segunda-feira, 12 de maio de 2014

As quatro estações

- Muito – respondeu ele, atrasado.
O vento soprava. Junho chegava... E, com ele, o frio... Com o frio, a saudade. Ele não sabia por que estava ali. Nem porque insistia em querer ressuscitar o passado. E sempre colocava a culpa na saudade. Era ela que lhe doía e lhe causava medo, que o acordava todos às noites, às três da manhã. Era ela que o visitava quando ia àquele lugar frio e sem cor, onde as árvores não eram verdes e o céu era cinza. A saudade explodia quando ele comia, ouvia música, olhava para o céu.
Enfim, a saudade, vinha quando ele respirava, como se cada segundo fosse uma eternidade sem alegria e perdão, sem piedade e carinho. Eternidade jurada de castigo e desgosto, saudade e desespero, morte e espera.
Este era o monstro que habitava embaixo de sua cama.
Se tinha medo? Não.
Tinha saudade... E a saudade gerava medo.

Querida mãe... Agora parece que tudo realmente acabou. Às vezes paro para pensar e vejo que tudo poderia ter sido diferente, mais fácil, se não tivesse sido tão ruim desde o começo. E que a cada ano se tornava pior. Poderíamos ter sido tão mais felizes. Tudo poderia ter sido mais humano e, ao mesmo tempo, tão divino!...“.

Sua vida era a vida de um menino de seis anos, normal. Brincava, sujava-se, dormia. Gostava da escola primária mais que qualquer outro. Lá era um ótimo aluno. Nas reuniões de pais e professores (aquela baboseira de “seu filho não tem respeito”. Os pais já não sabiam disso?), a única reclamação era sua extrema sinceridade e sua quietude diante da grosseria dos colegas. Ele nunca retrucava, brigava ou xingava, nem dizia palavrões que as crianças falam com  freqüência. Depois de algum tempo, esses palavrões passam a ser palavras do cotidiano, quando não, palavras para ser ditas na cama para se ter mais prazer. Nisso se vê a diferença excêntrica entre uma criança e um adulto: as crianças aproveitam bem mais as coisas e as palavras.
Sua mãe orgulhava-se dele. Não porque era o caçula de três irmãos, mas por ser especial.
Teresa não sabia a causa ou não queria admitir, mas ele era assim. Seus olhinhos castanhos diziam muito. Transmitiam algo novo, que seu coração de mãe não conseguia interpretar... Ou tinha medo de fazê-lo.

Seu pai havia morrido há dois anos, quando ele tinha quatro. Por isso, mal se lembrava dele. Não sabia seu nome nem como cintilar os vivos traços da figura paterna. Nunca perguntou a sua mãe. E ela nunca tocou no assunto. Sabia que sua morte ainda doía no coração de todos. A única coisa de que se lembrava era de sua estupidez e ignorância.

“... Eu via tudo mudar diante de mim e não sabia o que era. Não sabia nem quem era. Tive medo, pesadelos. Minha vida tornou-se um deles. Aquele sonho que eu contava quando criança acontecia só enquanto dormia, pois, quando acordava, tudo mudava. Tudo escurecia. Como agora... tudo esta escuro.”

O homem de terno sempre chegava às 19 horas. Ele sabia do horário porque era quando começava o Castelo Rá-Tim-Bum. E aquela criança de quatro anos adorava esse tipo de programa, era educativo, interessante e, até certo ponto, engraçado. Atualmente, ele assiste a esses novos desenhos japoneses para crianças pequenas e imagina como seria hoje se tivesse passado a infância diante desse tipo de atração.
 Sua mãe estava na cozinha, trabalhando para o homem de terno. Trabalhava para ele há 15 anos. Na verdade, usar o termo “trabalho” é errado. Ela não era sua empregada: era sua escava.
Sua irmã ajudava a mãe. Elas eram parecidas em tudo. Na pele, no cabelo, na voz... Na paciência.
Seu irmão estava na rua, andando de bicicleta. Era a única coisa que ele fazia bem: andar de bicicleta. Futuro promissor.
Todos os dias via o homem de terno entrando. Com ele, chegava o cheiro de álcool. Até hoje ele não suporta esse cheiro, sente náuseas. O homem entrava e deixava cair a pasta cheia de papéis no chão. A escrava pegaria dali a dez minutos. Os sapatos, atirados no canto, perto do banheiro. Doze minutos depois de o homem de terno entrar, ela pegava seu paletó do sofá e os sapatos, levava tudo para o quarto. Ele se perguntava por que sua mãe demorava sempre dez minutos para iniciar esse ritual. A resposta veio quando percebeu que, enquanto ela recolhia a desordem, o homem, já sem terno, devorava seu sagrado prato de comida. Isso jamais poderia esperar.
Ele comia, depois tomava uns goles de cachaça ou cerveja, ou as duas coisas. E o inferno começava.
- Sua vaca! – foi o primeiro grito daquela noite.
- Eles estarão secos amanhã – disse a voz, suave e cheia de medo.
- Não me interessa! Não sabe que saio cedo? – saía sempre às dez da manhã, o que é relativamente cedo para quem quer que seja cedo, ou então não encontraria motivo para brigar naquela noite de verão – Que inferno você é capaz de fazer por causa de um simples detalhe, mulher!
- Amanhã eles estarão secos e...
- E se chover? E se fizer frio? E se eles estiverem úmidos? Como vou usá-los?
- Coloquei para secar atrás da geladeira. Estarão secos...
- Imprestável! É isso que você é. Como sua mãe e suas irmãs: todas imprestáveis. Por isso que fizeram tanta questão que eu me casasse com você. Ninguém mais iria aceitar isso. Ouça o que vou dizer: se esses sapatos estiveram úmidos amanhã, eu te arrebento, mulher! – agarrou-a pelos braços e disse bem perto, intimidando, cuspindo em seus olhos e exalando o cheiro de álcool e mau hálito – Entende? Eu te arrebento, pois parece que você só entende assim. E sabes que eu faço você entender rapidinho e muito bem.
- Eu sei... – disse ela, soltando-se, com a voz chorosa - eu sei...
Teresa chegou ao quarto e seu filho caçula estava assistindo televisão. Realmente, era uma criança normal. Embora, muitos falassem o contrário, ela acreditava e via claramente que ele era normal.
- Vamos dormir?
- Ele não vai gritar mais? – perguntou os olhinhos castanhos brilhantes.
- Não... – respondeu Teresa, querendo chorar mais. – não vai.
- Mas e amanhã?
- Não sei... Vamos dormir para ver se sim?
- Então, não quero dormir...
- Filho, ele não faz por mal. Olhe para mim. Acredita em mim? Ele não faz por mal. Ele nos ama e trabalha para ganhar dinheiro. O trabalho o deixa nervoso e, às vezes, ele grita. Só isso.
- Ah... – suspirou ele, parecendo ter achado naquela cabeça de quatro anos uma explicação lógica e racional para os sofrimentos de sua família, e, principalmente, de sua mãe. – Nunca vou trabalhar...
Teresa riu. Riu tímida, amando o filho mais do que nunca.
- Te amo.
- Eu sei... Conta história?
Teresa se levantou, pegou o livro na estante. Era grosso, com a capa azul-bebê, cheia de figuras e desenhos de personagens importantes da Sagrada História dos Clássicos Infantis. Lá estavam Bambi, Dumbo, Branca de neve, ao lado dos sete pequenos homens que ele chamava de “criancinhas de barba”. Havia homens com espadas, príncipes, fadas, duendes. Porém, também havia monstros, morcegos, vampiros, lobos e alienígenas. Mas o que ele mais odiava era o Palhaço, que ficava no canto esquerdo superior da contracapa. Sempre odiou palhaços. Isso piorou depois de ter assistido um filme em que um palhaço, chamado A Coisa, que perseguia crianças. Esse nome, Coisa, já não lhe agradava por causa daquela gosma da década de 80 – mas esta Coisa, este palhaço, este demônio...
Tereza continuou lendo. A história não começava com “era uma vez...”, nem terminava com “felizes para sempre...”. Ele não gostava desses começos, nem desses finais. Era uma história de um mundo mágico, cheio de pássaros e flores coloridas. Havia flores vermelhas, azuis, alaranjadas, violetas e amarelas. Ah, as flores amarelas! Como ele gostava das flores amarelas! Amava girassóis e margaridas. E aquele mundo era colorido, o que fazia dele um mundo perfeito. Havia um rei e uma rainha, com seus filhos. Uma família feliz, que se amava, se respeitava, se bastava.
O mundo mágico não era na Terra. Nem ao menos na Via Láctea. Não era o mundo mágico de Oz, nem uma parte mágica de um mundo real, como o Castelo Rá-Tim-Bum. Era um planeta diferente, distante, o planeta Cupio. O mais belo planeta do Universo. Continha a harmonia da natureza e a felicidade dos homens.
- E você... Ama a mamãe? – perguntou ela, sem tirar os olhos da página aberta na figura da rainha, com seu bebê no colo.
Mas ele já havia dormido. Ela se levantou, deixou o livro no criado-mudo, apagou as luzes e saiu. Ele abriu os olhos e viu as mãos de Tereza fechando a porta. Teve vontade de chamá-la, mas não teve coragem. Sempre lhe faltou coragem. E muito mais ainda lhe faltaria.
Resolveu dormir de verdade.

Tive que depender de você para tudo. E você nunca se cansou de fazer tudo. Porém, mesmo muitíssimo agradecido por isso, vejo que tudo não foi o bastante, o suficiente. Minha dor era tão grande que necessitava de mais. E me doíam o coração e a alma ver que você fazia o impossível para me ver feliz. Mas meus olhos não mentiam, você percebia e sofria com isso.”

Ele viveu nesse ambiente por quatro anos. E esse período influenciou a sua vida até hoje. Debaixo daquele céu cinza, ainda sentia o cheiro e as dores daqueles anos. Viu sua mãe apanhando várias vezes. Seu pai queria que ela entendesse bem quem mandava e como ele queria que fossem as coisas. Às vezes, reclamava porque o feijão estava quente ou duro, ou porque a roupa esta quente demais – “Por que não passou antes?” – ou porque os sapatos estavam úmidos... Ou apenas frios, por causa da noite de inverno.
Existia somente uma verdade: todos na casa entendiam. E só pararam de entender num verão. Seu pai morreu num verão, estação em que todos se lembram de amigos, de viagens, de praias. Mas, para ele, lembrava a morte do homem de terno que batia na mãe que ele amava. E aquele homem perdeu tudo naquele jogo de cartas. Apostou tudo, até a vida. Pena que só tinha um cinco de copas nas mãos. Como ele desejou ter um ás! Como desejou que fosse ao menos um rei de paus! Mas ganhou somente um  cinco de copas. O pior que foi que não aceitou aquilo. Não quis pagar, não queria perder. Todos já estavam bêbados. Pagou com três tiros no peito. Morreu ali, numa garagem quente, com seu precioso paletó no chão. Tereza não estava lá para pegá-lo.
Para ele, o pai jogado naquele chão imundo de graxa despertava vários sentimentos: dúvida, medo, saudade, dor, alívio. Porém, o que mais o marcou foi ver aquela lágrima descer rápido pelo rosto de Tereza, quando ela tocou o caixão em que o homem de terno dormia, silencioso. Era seu pai. E ela sua mãe. Não entendia a morte ainda, e pensou: “Por que a mãe chorava, mesmo com o pai dormindo?” Ele sabia que aquele sono seria longo. Via aquela única lágrima, sozinha, breve, seca, saindo do olho direito e se encontrando com o canto direito da boca sem cor. Morreu...
E, naquela morte, Tereza encontrou a vida. Com a lágrima, muita coisa morreu. Menos Tereza... Muito menos.
Ele continuou crescendo. Era um menino de seis anos que crescia saudável. Brincava, na maioria das vezes, sozinho, quando brincava. Tinha seus brinquedos e com eles se divertia. Os amigos eram raríssimos e disso ele sentia falta. Quase nunca via os irmãos. Sua vida era em casa, ao lado da mãe. E depois que jogaram terra sobre o homem de terno, depois que aquela lágrima morreu naquele verão, ele teve que dizer adeus ao ócio junto da mãe. Tereza precisou arrumar um emprego, e seu caçula descobriu duas coisas que o acompanhariam pelo resto da vida: a saudade e o amor.

... Porém, agora estou só. E vejo o quanto me faz falta. As lágrimas que agora derramo nessa terra é parte do suor que minha alma transpira por correr sozinha. Uma pessoa pode se sentir realmente mal e fraca por saber que esta sozinha, que não ocupa um lugar no coração de alguém. E, mãe, não encontro ninguém mais, depois que você se foi.”

Sua irmã mais velha tinha 14 anos a mais que ele. Viu nela um exemplo intelectual e ético a ser seguido. Ela foi sua primeira professora. E, quando sua mãe se ausentou, foi também sua mãe. Seus traços físicos eram parecidos, principalmente os olhos castanhos brilhantes, que pareciam sempre lacrimar. Foi ela uma das pessoas que mais sentiu a dor e o sofrimento do machismo do pai. Foi obrigada a vestir o que ele mandava e dizer o que ele queria ouvir. Mas, mesmo assim, ela era a filha mais amada. Talvez por ser a primogênita. Quem sabe. Só se sabe de uma coisa: ela era quase perfeita.
E com ele, ela não foi diferente. Ele encontrou nela uma amiga. Nesse momento, com seis anos, descobriu algo grandioso: que uma alma poderia ser uma só com outra, pelo laço incorruptível da amizade.
Não era apenas um laço de sangue. Esse laço, por mais que se queria romper, sempre vai existir. Não importa se você odeia ou não seu irmão, ele sempre será seu irmão. Na amizade é diferente, metafísico. Escolhe-se. Por isso, cria-se um laço mais forte, mais sincero. Eterno.
Agora, naquele lugar frio e sombrio, ele pensava em tudo isso. A dor aumentava. Mais  dor, mais choro. As lágrimas rolavam. O céu cinza pairava e pesava sobre ele, escondendo o transcendente. Existia um Deus? Existiria realmente algo sobre a sua cabeça? Maior que ele e que qualquer outro homem? Criador de tudo e de todos, princípio do Universo?
Aquela não era a melhor hora para perguntas...
Ele não queria se recordar do outro irmão. Mas sabia que não poderia parar aquela série de lembranças. Logo ele apareceu na sua mente. A dor veio, mais uma vez, visitá-lo.
Ele como seu pai, lhe trouxera muito penar. Aquele menino de boné era uma miniatura de seu pai. Parecia que também gostava de ver o medo e a dor nos olhos das pessoas. Parecia que sua alma era parte de uma experiência diabólica, sádica.
O menino de boné nunca falava com ele. Por isso, sua infância fora tão distante do irmão. Não por causa da diferença de dez anos, mas da diferença de princípios, valores e virtudes. Passava por ele, trombava nele, continuava e nada falava. Nem um olhar. Era como se um cachorro estivesse ali e não o irmão caçula. E acreditem: se o cachorro latisse ou ao menos gemesse, seria sacrificado sem dó. O menino de boné não teria receio de chuta-lo para longe.
E o chute veio pesado e forte.
O homem de terno já havia morrido há 14 anos. E ele também agradeceu a Deus porque o pai morrera antes daquela cena. Tereza estava na sala, tricotando. Sua irmã, já casada, preparava-se para se despedir da mãe. O menino de boné acabava de chegar da rua e foi direto para o quarto. dez minutos depois, ele chegou do emprego que tinha arrumado para ajudar em casa. Seu jantar estava num prato no forno. Havia anoitecido. O inverno não era tão generoso como o verão, em que os dias duram ao menos duas horas a mais.
Ele se sentou e começou a comer. O menino de boné veio e, sem nada dizer, esmurrou sua bochecha direita. Seu braço bateu no prato, que se espatifou. Tereza veio correndo e levou as mãos à boca ao ver o filho no chão, como se não passasse de mais um caco de louça. E era assim mesmo que ele se sentia, pois sabia porque ganhara o murro. Ele sabia que o frio do inverno iria congelar muito mais do que a água no quintal.
- O que é isso? – foi o que Tereza conseguiu soltar.
- Ele é gay! – explodiu o menino, com o boné na mão.

Escolhi o caminho que escolhi e, acredite, sangrei sozinho por isso. O pior não foi sangrar. A dor maior foi sangrar sozinho. Mãe, você não estava lá! Você não podia ir ao meu quarto ler naquelas noites, nem pegar a porcaria do sapato no meio da sala. E eu chorei... Como choro agora.

Parecia que uma flor sorria para ele no meio daquela aquarela fria em que estava mergulhado. Achou estranho, pois era inverno, e as flores não tinham aquela coloração viva. Era uma florzinha simples, mas viva e colorida. Ela surgiu por trás de uma árvore e brilhou no meio da escuridão. Lembrou-se da lágrima que acabara de cair na terra. Teve saudade. Sentiu que não estava tão sozinho. Ao menos não naquele momento, vendo aquela flor amarela.
Tereza sorria.
Naquela noite, em seu quarto, os demônios pareciam mais vivos. As sombras, mais assustadoras. E, apesar dos 18 anos, sentiu medo. Medo de abrir os olhos e ver a triste realidade. De viver. De dormir e acordar no dia seguinte. O medo dominava sua alma: e alma e corpo choravam.
As lágrimas cessaram quando ouviu as batidas na porta. Não emitiu som algum. Somente olhou para a porta, mas continuou sentado na cama, abraçando suas pernas.
Viu então o rosto de Tereza surgiu na fresta. A luz do corredor irritou seus olhos, acostumados com a escuridão (foram 18 anos de trevas!). Ela levou a mão ao interruptor e... Fiat lux... A luminosidade tomou conta do quarto. Seus olhares se encontraram. O silêncio continuou. Porém, as lágrimas que inundavam ambos os olhares disseram tudo.
Tereza aproximou-se e sentou-se na beira da cama.
- É verdade? – perguntou, quebrando o silêncio.
- O que você acha? – respondeu, não com rispidez e, muito menos, com ironia, mas em tom de coragem e franqueza, ciente da resposta que a mãe lhe daria.
- Acho que sempre soube... mas preferi ignorar, não acreditar.
- E agora? – a voz emitia medo e saudade.
- Agora o quê?
- Como ficaremos?
- Como ficaremos? Em quê?
- Isso... Como ficaremos em tudo, a partir disso.
- Sabe o que me vem à cabeça?
- O quê?
- Uma frase de Antonie Saint-Exupèry D’Agay: “O essencial é invisível aos olhos. Só se vê bem com o coração”. Não podemos nos prender aos detalhes da vida, mas ao essencial. O detalhe disso tudo é que você é... Que você é o que escolheu ser. O essencial é que você é meu filho. Eu te amo. E você? Me ama?

Sempre dependi tanto de você. O tempo passou e não vi que envelheci. Há 12 anos, caminho sozinho... sem você. Fracassei inúmeras vezes. Culpei o mundo, os outros, os acontecimentos e Deus. Apesar de tudo, acreditei que poderia me destacar em tudo e com todos, pois você me disse que isso seria possível. Coloquei toda minha fé nas suas palavras.

O sol parecia ter parado de brilhar. As nuvens cobriam o céu, bloqueando a passagem dos raios e do calor. Uma forte corrente de ar gelado irrompeu sobre ele. O casaco balançou e o ar gélido penetrou através de sua roupa. O dia ficou escuro.
Via que a vida dele era como aquele lugar, frio e escuro. Não sabia mais quem ou o que ele era. Não sabia mais o que queria fazer, nem o que deveria fazer, muito menos o que iria fazer. Viu-se à beira do desespero, no fundo do poço, lá onde o céu parece tão pequeno. Só tinha uma certeza, e ela era sua grande fonte de força e esperança: atrás daquelas nuvens, o sol continuava a brilhar.

Se amei?
Amei.
Se fui feliz?
Tentei. Fiz o possível. Sei que era isso que você queria.
Mas o medo do escuro era maior. Sempre foi. E creio que sempre será.

Tereza foi internada às 14:32 horas no Hospital Municipal, ou Santa Casa de Misericórdia, se preferir. Se bem que lá não se vê muita misericórdia. Os médicos detectaram uma forte enxaqueca, mas não tinham certeza do diagnóstico. Os exames foram feitos. Os homens de branco andavam de um lado para o outro com pranchetas nas mãos. O resultado veio cruel e impiedoso.
Há coisas que só acontecem em filmes: milagres, amores eternos, amizades verdadeiras. Tereza representava, para seu filho caçula, um amor eterno e uma amizade verdadeira. Agora ela teria que ser também um milagre.
- Câncer – disse o homem de branco. – sua mãe tem um nódulo do tamanho de uma ameixa no cótex central. Aparentemente, não vai crescer mais. Parece estável. As dores piorarão. Na verdade, não sei como não as sentia antes. Há dois caminhos: a cirurgia e a espera. Os filhos escolhem...
A primeira escolha foi a espera. Esperaram por três meses, sem qualquer melhora. Mas todos sabiam que a única coisa que esperavam era a morte de Tereza. Depois de três meses, cansaram de esperar. Menos ele. Ele era paciente.
Dois meses após a notícia, Tereza foi morar numa clínica. Um mês lá e tudo parecia perdido. Ela andava pelos corredores quase todos os dias, porém, começou a perder a sanidade mental e tiveram que a prender na cama. Ele nunca havia chorado de pena pela mãe doente. Mas naquele dia, quando entrou no quarto e viu não só a mãe, mas também sua alma, presa naquela cama de lençóis listrados... chorou. Chorou por ele, pelos irmãos e pelo pai, por quem nunca havia chorado.
E o adeus dela aconteceu nesse dia.
- Quem é você? – perguntou Tereza, por trás daquela estranha.
- Seu filho... Lembra-se?
- Filho? – e olhou para os seus olhos castanhos. Parecia que seu cérebro não o conhecia, mas seu coração palpitou mais que o normal. Ela o reconheceu e o amou.
- É... Seu filho... – uma lágrima caiu.
- Se é um filho meu, tenho que te amar...
Ele riu, mas o tímido sorriso foi interrompido pela segunda lágrima.
- Sim... Acho que sim.
- E você?
- Eu, o quê?
- Me ama?
O homem de branco entrou no quarto, com uma pasta cheia de exames nas mãos. Sua expressão transmitia o que havia lá. E Tereza teve medo.
- Posso falar com o senhor por um momento? – perguntou o homem de branco, sem sequer olhar para Tereza. Parecia que seu medo era maior.
- Claro – respondeu ele, também com medo.
E foi dado o verídico.
Realmente só restava a espera

O frio que sinto agora é do seu cadáver embaixo dessa grama cinza. Tudo nesse cemitério é tão triste! Tudo na minha vida, durante os últimos 12 anos, foi tão triste! Aquele outono mudou muito mais coisas do que aquele verão em que ele se foi por causa das cartas... E muito mais do que aquele inverno em que tudo foi descoberto. Naquele outono, não foram só as folhas que caíram. Eu também caí com elas.
Sei que você quer que eu seja mais, que eu seja feliz de verdade. Sei que minhas lágrimas não vão ressuscita-la, que sua mão não vai sair desta terra úmida e tocar meus pés. Sei que uma luz do alto não vai cair sobre sua lápide e ordenar: “Levanta-te!”. Sei que só me resta esperar... Como sempre.
Aqui, agora, te prometo: serei feliz. Serei vitorioso. Farei o possível e o impossível (como você fez) para derrotar o medo do escuro. Para matar aqueles monstros que habitam meu armário. Para derrubar, de uma vez por todas, os gritos que inundam minha alma. Tudo isso por você... Você não fez o que fez para me ver chorar e fugir de medo. Não me acolheu e me amou com todas as suas forças para me ver no chão. Você não me segurou e me fez voar com você, para que eu caísse logo agora.
Mas mãe... às vezes, o planeta Cupio parece tão distante!
Seu filho.”

Tereza descansava em paz. E lá estava ele, ao lado dela. Aquela primavera estava tão fria e sombria! Uma mistura de outono e inverno. Lá estava ele, como todos os anos, meses, semanas... fazendo companhia para o cadáver já decomposto da mãe.
Por quê? Ele sempre tivera uma dívida com ela, uma conta a ser paga. Nunca pagara. Nunca tivera coragem. E era isso que o maltratava tanto. Era o que tirara dele toda a vontade de viver: a falta de coragem.
Inúmeras vezes ela perguntara. E ele nunca respondera. Fugira, esquivara-se, fingira. Como naquela noite, lendo aquela história fantástica sobre o planeta maravilhoso. Ou, naquela vez, quando a bomba de Hiroshima explodira dentro dele, revelando seu precioso segredo. Ou, ainda, naquela tarde no hospital. Ela sempre perguntava. Ele se calava. E este foi o seu tumor, o seu câncer.
Agora estava liberto. Curado. A primavera abria suas flores. Depois do inverno de saudade, do outono de dores e do verão de lágrimas. Agora ele respondia. Atrasado, mas respondia:

- Muito!

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