Darcy
Ribeiro (1922-1997) nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, no dia 26 de outubro
de 1922. Filho do farmacêutico Reginaldo Ribeiro dos Santos e da professora
Josefina Augusta da Silveira. Estudou no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e no
Ginásio Episcopal de Montes Claros. Mudou-se para São Paulo, estudou Medicina
durante três anos, desistiu do curso e de volta ao Rio de Janeiro, ingressou na
Escola de Sociologia e Política, graduando-se em 1946, no curso de Ciências
Sociais. Foi antropólogo, escritor e político brasileiro. Destacou-se com
trabalhos em defesa da causa indígena e com trabalhos na área da educação,
antropologia e sociologia.
Entre
1949 e 1951 trabalhou no Serviço de Proteção ao Índio. Colaborou para a
Fundação do Museu do Índio e do Parque Nacional Indígena do Xingu, na região do
atual Estado de Mato Grosso do Sul. Escreveu vários trabalhos em defesa da
causa indígena. Em 1955 organizou o primeiro curso de Antropologia na
Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro.
No
governo do presidente Jânio Quadros, em 1961, foi Ministro da Educação. No
governo de João Goulart foi Chefe da Casa Civil, onde elaborou as reformas de
base. Em 1964, teve seus direitos políticos cassados e foi exilado no Chile e
no Peru. Em 1976, de volta ao Brasil, dedicou-se à educação pública. Durante o
governo de Leonel Brizola, implantou no Rio de Janeiro os Centros Integrados de
Ensino Público (CIEP). Entre 1983 e 1987 foi vice governador do Rio de Janeiro,
e em 1991, foi eleito senador pelo Rio de Janeiro.
Escreveu
várias obras sobre etnologia, antropologia, educação, além de romances. Seu
último trabalho, em 1995, foi "O Povo Brasileiro - a Formação e o Sentido
do Brasil". Foi eleito para a cadeira nº 11, da Academia Brasileira de
Letras. É patrono da cadeira nº 28 do Instituto Histórico e Geográfico de
Montes Claros.
Darcy
Ribeiro faleceu em Brasília, vítima de câncer, no dia 17 de fevereiro de 1997.
Era filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos e de Josefina
Augusta da Silveira. Em Montes Claros fez os estudos fundamentais e secundário,
no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e no Ginásio Episcopal de Montes Claros.
Notabilizou-se fundamentalmente por trabalhos desenvolvidos nas áreas de
educação, sociologia e antropologia tendo sido, ao lado do amigo a quem
admirava Anísio Teixeira, um dos responsáveis pela criação da Universidade de
Brasília, elaborada no início dos anos sessenta, ficando também na história
desta instituição por ter sido seu primeiro reitor. Também foi o idealizador da
Universidade Estadual do Norte Fluminense. Publicou vários livros, vários deles
sobre os povos indígenas. No
primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983-1987), Darcy Ribeiro
criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Ensino
Público (CIEP), um projeto pedagógico visionário e revolucionário no Brasil de
assistência em tempo integral a crianças, incluindo atividades recreativas e
culturais para além do ensino formal - dando concretude aos projetos
idealizados décadas antes por Anísio. Muito antes dos políticos de direita
incorporarem o discurso referente à importância da Educação para o
desenvolvimento brasileiro, Darcy e Brizola já divulgavam estas idéias.
Nas eleições de 1986, Darcy foi candidato ao governo fluminense pelo PDT concorrendo com Fernando Gabeira (então filiado ao PT), Agnaldo Timóteo (PDS) e Moreira Franco (PMDB). Darcy foi derrotado, não conseguindo suplantar o favoritismo de Moreira que se elegeu graças à popularidade do recém lançado Plano Cruzado. Darcy Ribeiro também foi ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e exerceu o mandato de senador pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte - anunciada por um lento processo canceroso, que comoveu todo o Brasil em torno de sua figura: Darcy, sempre polêmico e ardoroso defensor de suas idéias, teve em sua longa agonia o reconhecimento e admiração até dos adversários.
Poucos anos antes de falecer, publica O Povo Brasileiro, obra na qual, dentre outras impressões, Ribeiro relativiza a suposta ineficiência portuguesa.
Com obras traduzidas para diversos idiomas (inglês, o alemão, o espanhol, o francês, o italiano, o hebraico, o húngaro e o checo), Darcy Ribeiro figura entre os mais notórios intelectuais brasileiros. No ano de 1995, o professor Darcy Ribeiro conseguiu concluir e publicar a obra que mais desejava mostrar ao mundo: o livro O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil.
Nas eleições de 1986, Darcy foi candidato ao governo fluminense pelo PDT concorrendo com Fernando Gabeira (então filiado ao PT), Agnaldo Timóteo (PDS) e Moreira Franco (PMDB). Darcy foi derrotado, não conseguindo suplantar o favoritismo de Moreira que se elegeu graças à popularidade do recém lançado Plano Cruzado. Darcy Ribeiro também foi ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e exerceu o mandato de senador pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte - anunciada por um lento processo canceroso, que comoveu todo o Brasil em torno de sua figura: Darcy, sempre polêmico e ardoroso defensor de suas idéias, teve em sua longa agonia o reconhecimento e admiração até dos adversários.
Poucos anos antes de falecer, publica O Povo Brasileiro, obra na qual, dentre outras impressões, Ribeiro relativiza a suposta ineficiência portuguesa.
Com obras traduzidas para diversos idiomas (inglês, o alemão, o espanhol, o francês, o italiano, o hebraico, o húngaro e o checo), Darcy Ribeiro figura entre os mais notórios intelectuais brasileiros. No ano de 1995, o professor Darcy Ribeiro conseguiu concluir e publicar a obra que mais desejava mostrar ao mundo: o livro O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil.
Na
verdade, Darcy passou a maior parte de sua vida almejando escrevê-lo. Por duas
vezes na sua conturbada vida de antropólogo, indigenista, filósofo, educador,
escritor e político, tentou concluí-lo, sendo sempre afastado do epílogo pelas
batalhas em que sempre se envolveu. Só o fez, quando sentiu que tinha pela
frente um inimigo que não podia vencer – a morte, que o rondava desde muito,
mas que sempre adiava sua cartada final, pois ele a convencia de que ainda não
era hora. Parece que houve um acordo final, nesse jogo de xadrez bergmaniano. Tomou
a forma de uma pequena trégua. Após escapar do CTI de um hospital, de quase
ninguém acreditava que saísse vivo, Darcy encontrou forças do fundo do seu ser,
exilou-se em Maricá e legou à posteridade essa obra – talvez a mais magistral
de todas, da robusta lista de criações originais que fez sobre o nosso
Brasil.Em 2005, um documentário em linguagem televisiva procurou popularizar as
ideias contidas no livro. Produzido pela Fundação Darcy Ribeiro, TV Cultura e
GNT, dirigido por Isa Ferraz e materializado (em 2 DVDs), sugere estabelecer
contato com o Brasil fantástico de Darcy e com o que significamos, segundo ele,
como participantes da grande história universal.Darcy parte de uma pergunta que
o atormentou por toda a vida. Por que, a despeito de todas as condições
favoráveis, o Brasil ainda não deu certo? Para superarmos o que nos amarrava,
ele acreditava, era imperioso saber quem somos, qual a gênese de nossa formação
e no que ela resultou. Nesse sentido, a idéia de lançar o conteúdo do livro em
linguagem televisiva foi perfeita.Sabemos que a sociedade contemporânea é da
televisão. Ela está presente em todos os lugares e influencia fortemente o
comportamento do cidadão no seu dia-a-dia. Acompanha-o quando acorda; nos
ônibus e carros com que se desloca ao trabalho; nos restaurantes onde come e na
sala de espera de seu médico ou dentista; no celular e na Internet; em casa, à
noite, dividindo tempo precioso com a família. Ao empregá-la, as classes
dominantes procuram manter os cidadãos amorfos, sem uma concepção de mundo
própria. Na disputa pelo poder de Estado, ela constrói vitórias e derrotas
eleitorais. Tornou-se um clássica, por exemplo, a manipulação promovida pelo
Jornal Nacional nas eleições presidenciais de 1989, após o debate entre Collor
e Lula, distorcendo a imagem do último a ponto de evitar sua provável vitória
nas urnas.Mas o uso apropriado de veículos como a TV também pode produzir
resultados excepcionais, difundindo vastamente certas ideias, como já nos dizia
Rossellini, com seu cinema pedagógico. Mostrar ao brasileiro a sua cara,
através de um documentário baseado na obra de Darcy Ribeiro, é a estratégia
mais correta para despertar as idéias contidas em seu livro, libertando-as do
campo meramente acadêmico, em que poucos irão entendê-lo e lançando-as à
população. Muito de acordo, aliás, com as concepções do próprio autor.
Embora
doutor honoris causa pela Sorbonne, plenamente reconhecido
em grandes universidades; criador, ele próprio da Universidade de Brasília,
ministro da Educação no governo João Goulart e autor de livros editados em
vários idiomas, Darcy não foi uma unanimidade (se é que isto existe realmente)
na academia. Sua história de “fazedor” desenvolve-se plenamente no campo, na
ação da prática de vida-vivida, segundo o axioma marxista de que “os filósofos
limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras, mas o que importa é
transformá-lo” (Karl Marx, in Teses sobre Feuerbach). Por suas
atitudes, colecionou muitos seguidores, mas também muitos opositores.
Darcy
faz parte da galeria de grandes intelectuais, que pensaram o Brasil e
desenvolveram, no pós-II Guerra Mundial, teses para nossa consolidação como uma
das grandes nações do mundo. O grupo inclui Florestan Fernandes e a chamada
Escola Paulista de Sociologia; intelectuais oriundos dos partidos de esquerda –
comunistas, socialistas, e outros; economistas da escola cepalina, que
influenciaram governos como os de Vargas, Juscelino, Jânio e João Goulart.
Profundo
conhecedor do interior Brasil, principalmente pela estreita ligação com o Serviço
de Proteção ao Índio (SPI), do Marechal Rondon, e com os indigenistas da época,
como os irmãos Villas Boas, Darcy destacou-se pelos seus valiosos estudos sobre
etnias indígenas brasileiras. Passou a ter dimensão nacional quando se
aproximou do professor Anízio Teixeira e os educadores da “Nova Escola”,
incorporando aos seus estudos a questão educacional no Brasil.
Suas
formulações teóricas sempre estiveram ligadas a uma prática política com um
conteúdo ideológico definido: ele partia da concepção de que na raiz de um
pensamento existem sempre interesses de classes, que determinam a sua essência.
Darcy escolheu um lado, e este foi sempre o dos despossuídos, tendo grande
capacidade de se colocar na posição do outro e de fazer do interesse do outro o
seu problema.
Por
suas idéias e ações políticas – exerceu, por exemplo, importante influência no
governo João Goulart – granjeou muitos inimigos. Por isso, foi obrigado ao
exílio, após o golpe de Estado de 1964.
Mas
jamais deixou de produzir. Em 1968, lançou O Processo Civilizatório, em que se
atreve a uma revisão crítica dos esquemas conceituais propostos pelos estudos
clássicos de antropologia. Esboça uma nova visão acerca do desenvolvimento
humano que gera forte impacto, haja vista não estar enquadrada nos esquemas
teóricos tradicionais.
Darcy
se queixa: “… nos faltava uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis
em seus próprios termos, fundada em nossa experiência histórica. As teorizações
oriundas de outros contextos eram todas elas eurocêntricas demais e, por isso
mesmo, impotentes para nos fazer inteligíveis. Nosso passado, não tendo sido o
alheio, nosso presente não era necessariamente o passado deles, nem nosso
futuro um futuro comum. (…) O processo civilizatório é minha voz nesse debate.
Ouvida, quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso círculo
ocidental, editada e reeditada muitas vezes é objeto de debates internacionais
nos Estados Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever um livro tão ambicioso
me custou algum despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade, que não
admitem a um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates,
tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições, também, dos comunistas,
porque não era um livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um
livro marxista. Isso não fez dano, porque ele acabou sendo editado e mais lido
do que qualquer outro livro recente sobre o mesmo tema” (Darcy Ribeiro, in O Povo
Brasileiro).
Seguindo
a esteira de grandes pensadores da sociedade brasileira, desde a Semana de Arte
Moderna de 1922, Darcy nos via na construção de uma civilização original:
tropical, mestiça e humanista. Dos índios, segundo ele, herdamos a capacidade e
o talento para o convívio; dos negros, a espiritualidade e a ação sobre o invisível
e o não dito; dos europeus a tecnologia e racionalidade. Estaríamos prontos,
pois, para ser uma das civilizações do mundo. Seriamos o novo, capaz, na medida
em que tomássemos conhecimento de nós mesmos, de contribuir para o avanço
histórico da humanidade.
“Nessa
confluência, que se dá sob regência dos portugueses, matrizes raciais dispares,
tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se
fundem para dar lugar a um povo novo, num novo modelo de estruturação
societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada
culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por
uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais
delas oriundos. Também novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação
societária, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada
ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa
vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os
brasileiros.” (Darcy Ribeiro, in O Povo Brasileiro).
O
documentário desenvolve as teses darcinianas seguindo o roteiro do livro. Ao
longo de sete capítulos, ele nos fala sobre nossas matrizes: tupi, lusa e afro.
Aborda o encontro dessas matrizes e a estruturação do modo de vida, costumes e
tradições: cabocla, caipira, crioula, sertaneja, e sulina. Por fim, discute os
caminhos para o Brasil atual, ressaltando principalmente nossas homogeneidades
(tais como a língua, comportamentos, etc.), e ao mesmo tempo, nossas
diversidades. Mais do que uma junção de etnias formando uma outra, e única (a
brasileira), o Brasil é um povo-nação, ajustado a um território próprio para
nele, juntos, viver o seu destino. Suas gentes teriam se amalgamado, a
princípio, pelo peculiar instituto do cunhadismo, originário da cultura
indígena. Formaram um ser, “um ninguém” – o brasileiro primitivo, que teve de
procurar o sentido de sua existência como ser diverso das culturas matrizes.
Para
Darcy Ribeiro formamos a maior presença neolatina no mundo, uma “Nova Roma”.
Melhor do que a anterior, porque radicalmente lavada em sangue índio e negro.
Esta singularidade nos condena a nos inventarmos a nós mesmos. Também nos
desafia a construir uma nova sociedade, inspirada nas nossas gêneses,
despontando no cenário mundial com nossas próprias particularidades
Darcy
acreditava que o Brasil estava diante de uma encruzilhada, a partir da
reordenação do mundo globalizado, provocada pela terceira revolução industrial.
Impaciente, via que poderíamos perder essa oportunidade, a exemplo do que
aconteceu no século XIX – quando não nos industrializamos e permanecemos como
exportador de matérias primas. Vem dai sua insistência na pauta prioritária da
educação como mola motriz do nosso desenvolvimento, em uma época na qual
dominar o conhecimento tornou-se o elemento decisivo no processo de emancipação
de um povo.
Utópico
no melhor da sua essência – movido por aquela utopia de que nos fala Karl
Mannheim que é a incongruência perante a realidade – Darcy é uma das figuras
mais fascinantes do século XX. Viveu plenamente suas utopias, não se importando
se elas não se realizavam. Sua contribuição ao Brasil, até hoje pouco
compreendida, pode nos dotar de uma proposta original. Abre caminho para
participar de fato do novo cenário internacional. Exige que venham à tona do
fundo de nossas humanidades, e num quadro de declínio de civilizações, novas
formas de viver. Pacíficas, alegres e sábias, capazes de recompor a aliança do
ser humano com a natureza e a criatividade. Darcy achava que, por nossa
peculiar formação, nós seriamos seus arautos.
Darcy Ribeiro, "homem de fé e de partido", como
confessou, talvez um dos mais eminentes intelectuais-políticos do Brasil do
após-guerra, ativista da cultura, fundador de universidades, antropólogo de
fama, teve reconhecimento internacional: Doutor Honoris Causa pela Sorbone. Um
tanto antes de falecer, em fevereiro de 1997, deixou uma esmerada síntese sobre
a diversidade geo-étnica da população brasileira no seu ensaio histórico-antropológico
intitulado O Povo Brasileiro, editado em 1995. Viu o país-continente
fortemente empenhado "na construção de uma civilização original: tropical,
mestiça e humanista". Uma "Nova Roma" como gostava de dizer. Antropologia
geral
A obra de Darcy Ribeiro pertence a uma geração de antropólogos pós-coloniais. Os que, pós-Segunda Guerra Mundial, desejavam romper com a antropologia eurocêntrica que via os habitantes de outros continentes mais atrasados como naturalmente inferiores, vocacionados para servir mais do que para mandar, sendo desqualificados para conduzir o autogoverno.
A obra de Darcy Ribeiro pertence a uma geração de antropólogos pós-coloniais. Os que, pós-Segunda Guerra Mundial, desejavam romper com a antropologia eurocêntrica que via os habitantes de outros continentes mais atrasados como naturalmente inferiores, vocacionados para servir mais do que para mandar, sendo desqualificados para conduzir o autogoverno.
Ao
mesmo tempo, ele lançou-se à obra de fazer inclinar o interesse pelas coisas do
Brasil em favor do povo comum que compõe esta imensa população miscigenada e
muito pobre que se abriga no país-continente.
No
fluxo da época, aquela geração posicionava-se de uma maneira crítica no tocante
à politica das metrópoles colonialistas, apontando sistematicamente seus
defeitos e violações. Bem ao contrário dos historiadores e ensaístas brasileiros-lusitanistas
das épocas anteriores.
Em
oposição a Gilberto Freyre (a quem ele não deixou de devotar admiração apesar
de lusófilo assumido, que viu a nação brasileira de cima do olhar do patriciado
nordestino, particularmente do Pernambucano - Casa Grande e Senzala,
1933), Darcy esmerou-se em destacar o crioulo, o indígena, o caboclo, o
vaqueiro, o matuto, o caipira, e tanta gente mais. Esforçou-se a realçar, desde
os tempos coloniais (1500-1822), a modesta dignidade destes e sua contribuição
na construção do país-nação. O livro dele, como Darcy Ribeiro abertamente
confessou, não é um tratado acadêmico, mas procura a polêmica e a denúncia. É
lavra de um intelectual engajado nas lutas políticas e sociais do seu país. A
sociedade brasileira na colônia e império
A dualidade da sociedade brasileira, resultado da expansão ultramarina lusitana do século 16, dava-se em dois sentidos: na relação do reinol contra os nativos (as centenas e centenas de tribos que habitavam o Brasil dos 1500), a quem a gente portuguesa tratou de submeter e reduzir à escravidão e, quase que simultaneamente, na fundação de uma unidade produtiva açucareira marcada pela relação do senhor de engenho frente aos escravos africanos.
A dualidade da sociedade brasileira, resultado da expansão ultramarina lusitana do século 16, dava-se em dois sentidos: na relação do reinol contra os nativos (as centenas e centenas de tribos que habitavam o Brasil dos 1500), a quem a gente portuguesa tratou de submeter e reduzir à escravidão e, quase que simultaneamente, na fundação de uma unidade produtiva açucareira marcada pela relação do senhor de engenho frente aos escravos africanos.
Nesta
gigantesca obra de conquista e dominação que se estendeu por mais de três
séculos e meio, os reinóis contaram não somente com o suporte da Corte
portuguesa como também com a chegada de diversas ordens religiosas (com
destaque para a Companhia de Jesus) que vieram missionadas para a catequese dos
nativos e dos escravos.
Como
integrante da intelectualidade esquerdista que foi fortemente influenciada pelo
marxismo (Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Junior, de 1933)
e pelo nacional-populismo (Getulismo, 1930-1954), Darcy Ribeiro voltou-se para
a denúncia da exploração do Brasil Colônia e a sua continuidade no Império e
República.
No
topo, no mando de tudo, estava o patriciado formado por descendentes de
lusitanos (donos de terra, traficantes de escravos, comerciantes, altos
burocratas). Na base, uma multidão de miseráveis ou semimiseráveis formada por
negros, mestiços ou brancos paupérrimos que "viviam por favor" nas
bordas das propriedades.
A
grande mácula do país, entre tantas mais, havia sido a política de não
integração da massa amestiçada no processo de cidadania. O brasileiro pobre e
racialmente miscigenado passou a ter uma vida à margem do restante da sociedade
urbana, habitando malocas nas periferias, favelas no alto dos morros cariocas,
choupanas de palha em vilarejos miseráveis por todo interior do país. Situação
que está longe, muito longe de vir a ser atenuada algum dia. A chave para a
explicação da abismal desigualdade de classes no Brasil residia numa palavra:
exploração. A histórica: da metrópole sobre a colônia; e a social: a do senhor sobre
o escravo e, após a abolição, da elite sobre o povo em geral.
Cedendo
às teses eco-marxistas e ambientalistas que então começaram a espocar, o autor
vê o processo de colonização praticamente como um ato de depredação da natureza
e rapinagem das riquezas e dos nativos. "Desmontam morrarias
incomensuráveis (devastação da floresta atlântica e dos picos de Minas Gerais).
Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente em milhões". Nesta enorme
operação destrutiva, em meio a intensas transformações, apenas a classe
dominante "permaneceu igual a si mesma exercendo sua interminável
hegemonia" (pág. 69).
O
destino do Brasil Colônia já havia sido traçado de modo irrevogável três
séculos antes pelo Padre Antonil (Cultura e opulência do Brasil,
1711), determinando que sua "vocação", por assim dizer, era exportar
seus produtos primários, principalmente aqueles forjados nos engenhos, os quais
ele detalhadamente estudou.
A
Independência, obtida em 1822, não significou a emancipação da mão de obra
escravizada espalhada pelos eitos, aldeias e cidades. Ao contrário, o fluxo do
tráfico negreiro se estendeu ainda até 1850 (lei Eusébio de Queirós) e a
manumissão só foi alcançada em 13 de maio de 1888. Enquanto a Grã-Bretanha
tratava de ampliar a introdução do maquinário movido por fornalhas a carvão, no
Brasil queimava-se "carvão humano" em "moinhos de gastar
gente".
O
Brasil foi o maior império escravista do Mundo Ocidental em todos os tempos.
A
exploração nefanda durou mais de 350 anos no Brasil, provavelmente mais tempo do
que durante o império romano, superando-o em número de escravos e em área
dedicada ao trabalho servil. Neste sentido, o país foi o maior império
escravista do Mundo Ocidental em todos os tempos.
A
chegada dos imigrantes europeus que vieram substituir os escravos acentuou
ainda mais a marginalização do "brasileiro", isto é, a "gente
parda". Daí Darcy Ribeiro, sem desconsiderar sua importância, não se
mostra um entusiasta do translado dos "brancarrões" vindos da Europa,
pois eles aprofundavam o desinteresse pela massa mestiça, mais pobre e mais
abandonada. As atenções governamentais do império e da
república se voltaram para atender as precisões dos recém-desembarcados
(subvenção de passagens, entrega de terras, ferramentais e sementes etc.). As
costas das autoridades voltaram-se ostensivamente contra os seus (*).
(*)
|
As
motivações iniciais para a atração da imigração européia a fim de povoar
áreas remotas e vazias do território brasileiro (alemães e italianos no sul
do país) foi feita com diversas intenções: a primeira delas era a
substituição da mão de obra escrava pela mão de obra colonial ou mesmo
assalariada para que o setor produtivo, particularmente o café, não viesse a
ser prejudicado. A isto se somou a doutrina racista do branqueamento da população,
constituída em sua maioria de mestiços.
A
formação de uma classe média dotada de tecnologia de pequena escala, na forma
de artesãos, profissionais mestres (ferreiros, carpinteiros, marceneiros,
moveleiros, moleiros, construtores etc.).
Nos
começos, era o próprio imigrante quem assumia os gastos do translado para o
Brasil, mas, desde 1882, em vista da crescente concorrência com a Argentina é
que foi adotada a imigração subvencionada pelo governo.
|
O que é o brasileiro? O brasileiro de hoje é produto de três etnias que
foram gradativamente perdendo a identidade, afastando-se das suas raízes. O
nativo se desindianizou, o negro se desafricanizou e o
branco se deseuropeurizou, gestando o que ele denominou de PROTOCÉLULA
ÉTNICA NEOBRASILEIRA.
Para Darcy Ribeiro, isto é um sinal evidente que
neste subcontinente, racial e culturalmente desbastado, apesar de tudo, se
gestou um novo tipo de civilização: a Civilização Tropical Brasileira (que,
segundo Gilberto Freyre, era o grande legado da colonização lusitana), distante
da cultura nativa aqui existente antes da conquista e mais afastada ainda da
civilização européia, apesar de importar sistematicamente tudo que surgia por
lá. Como afirmou Simon Bolívar em certa ocasião: "não somos índios nem
europeus".
Trata-se de algo singular, entre outras razões,
porque é uma civilização calcada na intensa miscigenação das etnias. O
país-nação em formação é um caldeirão de raças que convivem em relativa
harmonia, mas está longe de ser uma "democracia racial" como exaltou
Gilberto Freyre. Ainda que exista preconceito por parte dos brancos, jamais
alcançou a violência do ódio racial facilmente constatado na história dos
Estados Unidos. Todavia, esta "paz racial" bem pouco contribuiu para
minimizar o abismo social que aparta os ricos dos pobres, como qualquer
levantamento estatístico confere e a própria vista das cidades brasileiras
demonstra.
No momento de explicar quais motivos levaram o
Brasil a empacar depois de ter sido na época do açúcar e do ouro (1620-1820)
uma das maiores do mundo, enquanto a modesta América do Norte tornava-se uma
potência econômica e depois mundial, Darcy Ribeiro reduz tudo ao fato de haver
liberdade geral nos Estados Unidos, ao menos depois da Guerra de Secessão
(1861-1865), enquanto por aqui se vivia sob o escravagismo. O que fez com que o
país somasse apenas 10% do PIB norte- americano no transcorrer do século 19.
Enquanto lá, usando a linguagem de hoje,
difundia-se o empreendedorismo, o que proporcionava que cada homem ou mulher -
pelo menos entre os brancos vindos em massa da Europa - tivesse a mais ampla
autonomia para tocar a sua vida e decidir seus negócios (rurais ou urbanos) por
si mesmos. No Brasil, tal situação era prerrogativa de poucos – "os homens livres
da ordem escravocrata" -, e geralmente subordinada a serviço dos poderosos
(*). Assim, Darcy Ribeiro contorna as explicações
raciais e de ordem cultural e afirma o primado marxista da exploração do homem
pelo homem abertamente praticada no Brasil.
(*) HOMENS LIVRES NA
ORDEM ESCRAVOCRATA
|
Tese de
1964, foi um ensaio inovador da historiadora Maria Sylvia Carvalho Franco.
Tendo por base a exploração cafeeira do Vale do Paraíba, procurou deslocar a
atenção à historiografia nacional do enfoque do sistema
"latifúndio-monocultura-escravidão" para aquela miuçalha de gente
mestiça ou branca pobre, mas laboriosa que vivia nas bordas das propriedades
e vilarejos. O que gerou "uma formação sui generis de
homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil -
destituído de propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse"
(pag. 14). Era composta por "sitiantes, vendeiros, tropeiros e diversas
outras categorias de homens livres, que não tinham a propriedade da terra,
mas o direito de uso, e que ocupassem o espaço para suprir as necessidades da
vizinhança com alimentos, animais para transporte, etc.".
Esta
preocupação teve seguimento com os trabalhos de Jorge Caldeira em seu intento
em enfocar a atenção nos "empreendedores" que desde os tempos
colônias começam a formar o mercado interno e a expandir a economia
brasileira para outras direções (ver A Nação Mercantilista e História do Brasil com empreendedores).
Caldeira
inclina-se pela ênfase naqueles homens livres com iniciativa que são
colocados no "centro da história do Brasil colonial, focando naquele que
abandona a tradição e sociedade nativa e busca o enriquecimento. Essa figura,
ligada à produção independente e à pequena propriedade, produziu uma economia
dinâmica, que crescia em taxas mais elevadas que a da Metrópole - mesmo tendo
de lutar contra a ação do governo. Resultado: a economia brasileira, em 1800,
era maior que a de Portugal".
|
Arcaico e Moderno: Antes de se lançar na classificação dos diversos
brasis, Darcy Ribeiro atenta para outro tipo de luta que não se liga
diretamente ao conflito entre senhores e seus dependentes e que esteve presente
sistematicamente na maioria dos debates ideológicos e políticos do Brasil. Aquele
que envolve a presença do ARCAISMO sempre em guerra defensiva
contra o MODERNISMO ou o PROGRESSISMO, que em geral
está circunscrito à elite política e intelectual.
Como de fato o país nunca conseguiu livrar-se da
presença do patriciado, particularmente do de origem rural - que sempre ocupou
e continua ocupando posições estratégicas no Estado e na burocracia -, a
modernidade, para vingar, tem sempre de lutar vigorosamente para poder se
impor. Nem as leis eleitorais, nem as econômicas, nem as leis previdenciárias e
sociais foram obtidas sem fazer enormes concessões ao mundo arcaico.
Trata-se de um peso morto, de um lastro muito
pesado que impede o país de decolar, daí Darcy Ribeiro e parte dos intelectuais
seus contemporâneos terem crescente simpatia por uma revolução social como a
única capaz de superar o contraste entre o arcaico e o moderno.
Certamente, jamais esperaram que a
modernidade pudesse vir a ser imposta pela aliança entre o público (governo
militar) a o privado (o empresariado brasileiro e as multinacionais),
hegemônica a partir do Golpe de 1964, ao tempo em que mantinha e reforçava o
arcaico (Estados de tradição oligárquica viram-se super-representados, enquanto
que os mais avançados foram despojados de representação proporcional) (*). (*) Um dos melhores ensaios sobre o
relacionamento entre os militares conspiradores e os representantes das
federações patronais (unidos no IPES) continua sendo o de René Dreyfuss: 1964,
a conquista do Estado, de 1981.
Obras de Darcy Ribeiro
(por: Adriana Flávia, Giannini Sena e Rogério Fernandes)
|
ETNOLOGIA
|
• Culturas e
línguas indígenas do Brasil - 1957
|
• Arte plumária
dos índios Kaapo - 1957
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• A política
indigenista brasileira - 1962
|
• Os índios e a
civilização - 1970
|
• Uira sai, à
procura de Deus - 1974
|
• Configurações
histórico-culturais dos povos americanos - 1975
|
• Suma etnológica
brasileira - 1986 (colaboração; três volumes).
|
• Diários índios
- os urubus-kaapor - 1996, Companhia das Letras
|
ANTROPOLOGIA
|
• O processo
civilizatório - etapas da evolução sócio-cultural - 1968
|
• As Américas e a
civilização - processo de formação e causas do desenvolvimento cultural
desigual dos povos americanos - 1970
|
• Os índios e a
civilização - a integração das populações indígenas no Brasil moderno - 1970
|
• Os brasileiros
- teoria do Brasil - 1972
|
• The culture - historical configurations of the American
people - 1970 (edição brasileira em 1975).
|
• O dilema da
América Latina - estruturas do poder e forças insurgentes - 1978
|
• O povo
brasileiro - a formação e o sentido do Brasil - 1995.
|
ROMANCES
|
• Maíra - 1976
|
• O mulo - 1981
|
• Utopia selvagem
- 1982
|
• Migo - 1988
|
ENSAIOS
|
• Kadiwéu -
ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza - 1950
|
• Configurações histórico-culturais
dos povos americanos - 1975
|
• Sobre o óbvio -
ensaios insólitos - 1979
|
• Aos trancos e
barrancos - como o Brasil deu no que deu - 1985
|
• América Latina:
a pátria grande - 1986
|
• Testemunho -
1990
|
• A fundação do
Brasil - 1500/1700 - 1992 (colaboração)
|
• O Brasil como
problema - 1995
|
• Noções de
coisas - 1995
|
EDUCAÇÃO
|
• Plano
orientador da Universidade de Brasília - 1962
|
• A universidade
necessária - 1969
|
• Propuestas -
acerca da la renovación - 1970
|
• Université des
Sciences Humaines d'Alger - 1972
|
• La universidad
peruana - 1974
|
• UnB - invenção
e descaminho - 1978
|
• Nossa escola é
uma calamidade - 1984
|
• Universidade do
terceiro milênio - plano orientador da Universidade Estadual do Norte Fluminense
- 1993
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Darcy
Ribeiro (http://pt.wikipedia.org/wiki/Darcy_Ribeiro) é uma das poucas
personalidades que gostaria de ter conhecido. Não em razão dos cargos que
ocupou, mas em virtude dos livros que nos legou. E foram tantos e tão bons que
é difícil escolher um para resenhar. Após uma criteriosa seleção, o premiado
foi O POVO BRASILEIRO (Companhia das
Letras, 2060).
Logo
na introdução, Darcy Ribeiro desfaz o mito da integração racial pacífica.
Segundo ele a unidade nacional resultou de “...um processo continuado e
violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de
supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de
toda tendência virtualmente separatista.” Portanto, esqueça todas as belas e
possivelmente inverídica palavras que você já leu sobre este país. O Brasil não
foi palco nem de uma farsa, nem de uma comédia, mas de uma tragédia.
Por
baixo da aparente “...uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda
discrepância, gerada pelo tipo de estratificação que o processo de formação
nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda
estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada
privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais
intransponíveis que as diferenças raciais.”
Em
razão deste processo “...as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois
luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o
pavor pânico do alçamento das classes oprimidas.” O Brasil não é um país de
oportunidades. A mobilidade social é praticamente inexistente. “O mais grave é
que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se
cristalizaram num ‘modus vivendi’ que aparta os ricos dos pobres, como se
fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira
de indiferença com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar
ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alteridade. O povo
massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que
privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e
concedido.”
Um
exemplo claro de como as desigualdades originais ainda ecoam e são reforçadas
na sociedade brasileira pode ser visto todos os dias nos telejornais. Se alguém
da classe rica morre a cobertura jornalística é intensa, dramática e
individualiza detalhadamente a vítima. O morto tem direito à uma história, sua
perda é lamentada em função daquilo que ainda estaria em condição de realizar.
Quando
os pobres são abatidos como moscas nos conflitos entre policiais e traficantes
a imprensa relata apenas o que considera essencial: “conflito no morro do
Alemão fez 19 vitimas”. Recentemente, no horário nobre, a Rede Globo
despretensiosamente assumiu a versão de que “todos os 19 mortos no morro do
Alemão eram criminosos”. Ao contrário do janota, os pobres não têm história. E
apesar da CF88 prescrever que todos são iguais perante a Lei, a imprensa nega
aos pobres brasileiros o direito de serem considerados honestos, processados e condenados pelo Poder
Judiciário ao invés de abatidos como animais. A mídia transforma a pobreza em
crime e reforça esta idéia nos expectadores pobres.
No
primeiro capítulo, Darcy nos dá um panorama do Novo Mundo. E nos diz o que
poucos tem dito “...só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. Ele
é quem nos fala de suas façanhas. É ele também, quem relata o que decidiu aos
índios e negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias
falas. O que a documentação copiosíssima nos conta é a versão do dominador.”
No
segundo capítulo, o autor trata da gestação ética, ou seja, do processo de
fusão das matrizes indígena, negra e lusitana. “Custando uma quita parte do
preço de um negro importado, o índio cativo se converteu no escravo dos pobres,
numa sociedade em que os europeus deixaram de fazer qualquer trabalho manual.
Toda tarefa cansativa, fora do eito privilegiado da economia de exportação, que
cabia aos negros, recaía sobre o índio.” É interessante notar que a legislação
colonial proibia expressamente a escravização do gentio. Mas então como agora
os privilegiados não eram lá muito legalistas.
À
medida que os portugueses faziam filhos nas negras e índias, uma nação de
mestiças foi sendo criada. “Os brasilíndios ou mamelucos paulistas foram
vítimas de duas rejeições drásticas. A dos pais, com quem queriam
identificar-se, mas que os viam como impuros filhos da terra, aproveitavam bem
seu trabalho quando meninos e rapazes e, depois, os integravam a suas
bandeiras, onde muitos deles fizeram carreira. A segunda rejeição era do gentio
materno. Na concepção dos índios, a mulher é um simples saco em que o macho
deposita a semente. Quem nasce é o filho do pai, e não da mãe, assim visto
pelos índios. Não podendo identificar-se com uns nem com outros de seus
ancestrais, que o rejeitavam, o mameluco caía numa terra de ninguém, a partir
da qual constrói sua identidade de brasileiro.”
Nem
todas as tribos indígenas tiveram o mesmo destino. Algumas foram exterminadas
em razão de serem hostis. Outras fugiram para o interior. Outras, ainda, foram
desmanteladas nos descimentos. À medida que o gentio do litoral se tornava
escasso, os colonos e seus mamelucos capturavam índios das mais diversas
origens culturais e linguísticas no interior e os reuniam em grandes
aldeamentos próximos ao litoral onde ficavam à disposição para serem
escravizados e catequizados. Mas alguns “...grupos tribais, ainda que
conscritos à economia colonial, lograram manter certa autonomia na qualidade de
aliados dos brancos para suas guerras contra outros índios. O relevante neste
caso é que, em lugar de amadurecerem para a civilização - passando
progressivamente da condição tribal à nacional, da aldeia à vila, como
supuseram tantos historiadores - , esses núcleos autônomos permaneceram
irredutivelmente indígenas ou simplesmente se extinguiram pela morte de seus
integrantes.”
Algum
tempo depois de consolidar a ocupação do litoral, os portugueses começaram a
trazer os negros africanos para a lida nos engenhos de açúcar. “A diversidade
lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a
essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar
a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas
propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos
solidários que retivessem o patrimônio cultural africano.” Portanto, o processo
de destruição das culturas indígenas e negras foi bastante semelhante.
Ribeiro
descreve em detalhes o empreendimento colonial. “A empresa escravista, fundada
na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e de coerção
permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó
desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa
compressão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio,
primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente,
como um animal de carga; depois, para ser de outro, quando transfigurado
etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação
dos seus interesses.”
Apoiado
em vasta literatura, Darcy Ribeiro informa que o “...tupi foi a língua materna
desses neobrasileiros até meados do século XVIII.” Sobre o nome Brasil
esclarece que velhas “...cartas do mar oceano traziam registros de uma ilha
Brasil referida provavelmente por pescadores ibéricos que andavam a cata de
bacalhau...”. Portanto, não foi o Pau Brasil que deu o nome ao país. O mais
provável é que os habitantes da terra que utilizavam o nome Brasil o tenham
atribuído à arvore que constituiu a primeira grande matéria prima extraída do
Novo Mundo.
Apesar
da carência de registros genuinamente indígenas (ou seja, produzidos pelos
índios), o autor sustenta que “...o Brasil é a realização derradeira e penosa
dessas gentes tupis, chegadas à costa atlântica um ou dois séculos antes dos
portugueses, e que, desfeitas e transfiguradas, vieram dar no que somos:
latinos tardios de além-mar, amorenados na fusão com brancos e com pretos,
deculturados das tradições de suas matrizes ancestrais, mas carregando
sobrevivências delas que ajudam a nos contrastar tanto com os lusitanos.”
A
tese de Darcy Ribeiro se coaduna com a toponímia tupi que foi preservada pelos
brasileiros. Quase todos os nomes das localidades, rios, acidentes do terreno,
etc. na costa ou próximo da costa são de origem Tupi. Quando subiram a serra
através dos “peabirús” (caminhos de índio que já existiam antes de 1500) os
portugueses chegaram a “Piratininga“, aldeamento provisório próximo aos rios
“tietê” e “tamanduateí”.
Sempre
bastante cuidadoso o autor afirma que o “...surgimento de uma etnia brasileira,
inclusiva, que possa envolver a gente variada que aqui se juntou, passa tanto
pela anulação das identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como
pela diferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os mulatos
(negros com brancos), caboclos (brancos com índios) e curibocas (negros com
índios).”
O
nascimento da consciência brasileira remonta a Gregório de Matos (1633-1696).
Os textos de Anchieta, Nóbrega e outros letrados foram desconsiderados porque
eles se identificavam mais com a etnia do colonizador do que com a gente da
terra. Já Gregório de Matos zombava da nobreza baiana usando uma perspectiva
que o aproximava mais dos habitantes nativos.
“A
historieta clássica, tão querida dos historiadores, segundo a qual os índios
foram amadurecendo para a civilização de forma que cada aldeia foi se
convertendo em vila, é absolutamente inautêntica.” Segundo Darcy Ribeiro o
“...índio é irredutível em sua identificação étnica, tal como ocorre com o
cigano ou com o judeu. Mais perseguição só os afunda mais convictamente dentro
de si mesmos.” Sendo assim, a incorporação dos índios ao patrimônio nacional
“...só se faz no plano biológico e mediante o processo, tantas vezes referido,
de gestação de mamelucos, filhos do dominador com as mulheres desgarradas de
sua tribo, que se identificavam com o pai e se somavam ao grupo paterno.”
Um
pouco mais adiante o autor dá detalhes escabrosos do tráfico negreiro. O
contingente de negros incorporados ao empreendimento colonial era 30.000 em
1600; quantia esta que subiu para 1.500.000 em 1800. Darcy Ribeiro frisa,
entretanto, que é difícil quantificar o total de negros que foram trazidos ao
Brasil. Mas alerta que “...os concessionários reais do tráfico negreiro tiveram
um dos negócios mais sólidos da colônia, que duraria três séculos,
permitindo-lhes transladar milhões de africanos ao Brasil e, deste modo,
absolver a maior parcela do rendimento das empresas açucareiras, auríferas, de
algodão, de tabaco, de cacau e de café, que era o custo da mão-de-obra
escrava.“ Aos negros devemos não só a construção das cidades coloniais, mas a
introdução das técnicas de mineração. Em razão de seus cálculos, o autor
concluiu que “um total de 6.352.000 escravos foram importados entre 1540 e
1860.”
O
terceiro capítulo do livro é simplesmente primoroso. Usando uma escrita
envolvente e absolutamente envolvente, Darcy Ribeiro narra as Guerras do Brasil
e os descaminhos da Empresa Brasil. “O conflito interétnico se processo no
curso de um movimento secular de sucessão ecológica entre a população original
do território e o invasor que fustiga a fim de implantar um novo tipo de
economia e sociedade. Trata-se, por conseguinte, de uma guerra de extermínio.”
Os capítulos desta guerra são conhecidos: guerra entre portugueses e índios que
não aceitaram o jugo luso (Revolta dos Tamoios); guerra entre colonos e
jesuítas que defendiam os índios; guerras entre lusitanos e caboclos (Cabanos);
guerra entre negros fugidos e senhores de escravos (Palmares) e guerras entre
pobres e fazendeiros (Canudos).
Todos
os conflitos referidos e detalhados pelo autor tinham um único propósito:
possibilitar a exploração da Empresa Brasil. “No plano econômico, o Brasil é
produto da implantação e da interação de quatro ordens de ação empresarial, com
distintas funções, variadas formas de recrutamento da mão-de-obra e diferentes
graus de rentabilidade. A principal delas, por sua alta eficácia operativa, foi
a empresa escravista, dedicada seja à produção de açúcar, seja à mineração de
ouro, ambas baseadas na força de trabalho importada da África. A segunda,
também de grande êxito, foi a empresa comunitária jesuítica, fundada na
mão-de-obra servil dos índios. Embora sucumbisse na competição com a primeiro,
e nos conflitos com o sistema colonial, também alcançou notável importância e
prosperidade. A terceira, de rentabilidade muito menor, inexpressiva como fonte
de enriquecimento, mas de alcance social substancialmente maior, foi a
multiplicidade de microempresas de produção de gêneros de subsistência e de
criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra,
que iam de formas espúrias de parceria até a escravização do indígena, crua ou
disfarçada.”
Um
pouco mais adiante, o autor esclarece que sobre as três esferas empresariais
“... pairava, dominadora, uma quarta, constituída pelo núcleo portuário de
banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação.” Ninguém deve
estranhar a semelhança entre o Brasil deste início de século XXI e o descrito
por Darcy Ribeiro. O setor bancário ocupa o topo da pirâmide econômica
(auferindo da União 150 bilhões de juros ano), logo abaixo vem o agronegócio
voltado para a exportação baseado no latifúndio produtivo, em que a produção
mecanizada é complementada pelo trabalho braçal remunerado com salários
baixíssimos. A grande maioria dos brasileiros de hoje é paupérrima, exatamente
como foram seus antepassados.
A
ocupação territorial posterior à invasão lusitana ocorreu em função da
exploração econômica colonial. Até bem pouco tempo a urbanização era
incipiente. “As cidades e vilas da rede colonial, correspondentes à civilização
agrária, eram, essencialmente, centros de dominação colonial criados, muitas
vezes, por ato expresso da Coroa para defesa da Costa, como Salvador, Rio de
Janeiro, São Luis, Belém, Florianópolis e outras.” O interior foi ocupado lenta
e paulatinamente em função da necessidade de obtenção de mão-de-obra indígena,
da incorporação de novas áreas à exploração comercial e a busca de ouro, prata
e pedras preciosas. Durante vários séculos o Brasil foi um país essencialmente
agrário. A intensificação da urbanização ocorreu apenas no século XX e mesmo
assim não acarretou uma substancial modificação da estrutura sócio-econômica.
“Em
nossos dias, o principal problema brasileiro é atender essa imensa massa urbana
que, não podendo ser exportada, como fez a Europa, deve ser reassentada aqui.
Está se alcançando, afinal, a consciência de que não é mais possível deixar a
população morrendo de fome e se trucidando na violência, nem a infância
entregue ao vício e a delinqüência e à prostituição. O sentimento generalizado
é de que precisamos tornar nossa sociedade responsável pelas crianças e
anciãos. Isso só se alcançará através da garantia de pleno emprego, que supõe
uma reestruturação agrária, porque ali é onde mais se pode multiplicar as
oportunidades de trabalho.”
Estas
palavras otimistas devem ter soado mal ao próprio autor. No parágrafo seguinte
ele acrescenta que não “...há nenhum indício, porém, de que isso se alcance. A
ordem social brasileira, fundada no latifúndio e no direito implícito de ter e
manter a terra improdutiva, é tão fervorosamente defendido pela classe política
e pelas instituições do governo que isso se torna impraticável.”
Dacy
Ribeiro faz uma longa dissertação sobre a deterioração urbana e alerta. “Hoje
em dia é o crime organizado como grande negócio que cumpre o encargo de viciar
e satisfazer o vício de 1 milhão de drogados. Quem quiser acabar com o crime
organizado, deve conter o subsídio ao vício dado pelos norte-americanos.”
Após
dar detalhes sobre cada uma das classes sociais brasileiras o autor frisa que
essa “...estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um
sistema autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são as
classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos as classes intermediárias. Seu
núcleo mais combativo, as classes urbanas. E seu componente majoritário são as
classes oprimidas, só capazes de explosões catárticas ou de expressão indireta
de sua revolta. Geralmente estão resignadas com seu destino, apesar da
miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade de organizar-se e enfrentar
os donos do poder.”
A
distância entre as classes ricas e as pobres sempre foram e ainda são abissais
no Brasil. “Essas diferenças sociais são remarcadas pela atitude de fria
indiferença com que as classes dominantes olham para esse depósito de
miseráveis, de onde retiram a força de trabalho de que necessitam.” Em seus
estudos e pesquisas Darcy Ribeiro notou que a “...classe dominante bifurcou sua
conduta em dois estilos contrapostos. Um, presidido pela mais viva cordialidade
nas relações com seus pares; outro, remarcado pelo descaso no trato com os que
lhe são socialmente inferiores.”
Em
razão da mestiçagem “...mais do que preconceitos de raça ou de cor, têm os
brasileiros arraigado preconceitos de classe. As enormes distâncias sociais que
medeiam entre pobres e remediados, não apenas em função de suas posses mas
também pelo seu grau de integração no estilo dos grupos privilegiados - como
analfabetos ou letrados, como detentores de um saber vulgar transmitido
oralmente ou de um saber moderno, como herdeiros da tradição folclórica ou do
patrimônio cultural erudito, como descendentes de famílias bem situadas ou de
origem humilde - opõe pobres e ricos muito mais do que negros e brancos.”
Quando
chegam ao Brasil a partir do final do século XIX os imigrantes europeus
encontram um país socialmente estruturado em todo território nacional. Sua única
opção foi a integração cultural e, em razão dela, a paulatina miscigenação.
“Não ocorre no Brasil, por conseguinte, nada parecido com o que sucedeu nos
países rio-platenses, onde uma etnia original numericamente pequena foi
submetida por massas de imigrantes que, representando quatro quintos do total,
imprimiram uma fisionomia nova, caracteristicamente européia, à sociedade e à
cultura nacional, transfigurando-os de povos novos em povos transplantados.”
Apesar
de algum dinamismo econômico o Brasil não deslancha em razão da preservação de
sua arcaica estrutura sócio-cultural. A oposição entre os interesses do
patronato empresarial, de ontem e de hoje, e os interesses do povo brasileiro”
freiam o pleno desenvolvimento do país. Segundo Darcy Ribeiro as classes
dirigentes brasileiras são muito parecidas aos consulados romanos, pois ao
longo de séculos tem agido “...como representantes locais de um poder externo,
primeiro colonial, depois imperialista, a que servem como agentes devotados e
de quem tiram sua força impositiva.” Em razão deste característica consular a
elite econômico-financeira do Brasil não se sente responsável “... pelo destino
da população que, a seus olhos, não constitui um povo, mas uma força de
trabalho, ou melhor, uma fonte energética desgastável nas façanhas
empresariais.”
O
magnífico, profundo e bem escrito livro O POVO BRASILEIRO tem ainda dois
capítulos. No quarto Darcy Ribeiro percorre as entranhas da história do país
para esmiuçar as principais características e façanhas do Brasil crioulo, do
Brasil caboclo, do Brasil sertanejo, do Brasil caipira e dos Brasis sulinos
(gaúchos, matutos e gringos). No último usa toda sua eloquência e maestria para
escarafunchar os destinos do país. Mas como já dei ao leitor um panorama geral
da obra fico por aqui. Para obter informações adicionais sobre Dacy Ribeiro e
sua obra consulte http://www.fundar.org.br/.
“Por
que o Brasil ainda não deu certo?” Esta é a questão que motiva a obra de Darcy
Ribeiro (2002), dedicada a compreender o Brasil e os brasileiros – sua gestação
como povo e seu lugar específico na história humana.
Ribeiro,
no quadro de sua teoria da história, cunha dois conceitos com os quais
trabalhará ao longo de toda sua obra: a) “povo novo” e b) “transfiguração
étnica”. O primeiro diria respeito ao resultado da confluência das três
matrizes raciais – portuguesa, negra e indígena – que deram origem ao
brasileiro e à sua especificidade:
“Nessa
confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais
díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se
enfrentam e se fundem para dar lugar a um “povo novo” (Ribeiro, 1970) num novo
modelo de estruturação societária. Novo porque surge como uma etnia nacional,
diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada,
dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de
traços culturais dela oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto
como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. “Povo
novo”, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura
uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de
escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela
inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão
sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros” (Ribeiro, 1970: 19)
O
caráter de novidade, contudo, do povo brasileiro, carregaria consigo a outra
face da mesma moeda – um povo que é simultaneamente “novo” e “velho”:
“Velho,
porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um
implante ultramarino da expansão européia que não existe para si mesmo, mas
para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de
bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no
país ou importa.” (ibidem, p. 20)
Já
o conceito de “transfiguração étnica” diria respeito ao processo através do
qual os povos surgem, se transformam ou morrem.
Ribeiro
aplica tais termos à análise da realidade histórica brasileira, estruturando
seu estudo em torno de cinco eixos: I) “O Novo Mundo”, que situa a formação do
Brasil dentro do processo de expansão dos “impérios mercantis salvacionistas”
europeus; II) “Gestação Étnica”, que mapeia os processos responsáveis pelo
surgimento da etnia brasileira a partir de suas três matrizes formadoras; III)
“Processo Sociocultural”, que identifica as forças responsáveis pela
diversificação de nossa matriz étnica originária em diversos “modos rústicos de
ser” dos brasileiros; IV) “Os Brasis na história”, dedicado à identificação e
descrição destes modos de ser; V) “O Destino Nacional”, que analisa o tipo de
estratificação social que advém de nosso processo de formação, assim como suas
consequências em termos de tensões dissociativas de caráter traumático.
Ribeiro
situa a expansão ultramarina portuguesa dentro do amplo “processo
civilizatório” que deu origem a dois Estados nacionais precocemente unificados:
Portugal e Espanha. Impulsionados pela força de suas revoluções tecnológica,
mercantil e política, tais nações se projetam, a partir da Península Ibérica,
em direção às Américas, África e Ásia, motivados por uma ideologia
salvacionista que ambicionava unificar todos os povos pagãos sob a égide de um
império mundial católico-romano.
Ao
chegar ao Brasil, os portugueses se defrontam com centenas de tribos do tronco
tupi que ocupavam o litoral. É chegada a hora do “enfrentamento dos mundos” –
batalha que, nas palavras de Ribeiro, foi francamente desfavorável aos
índios:“Frente à invasão européia, os índios defenderam até o limite possível
seu modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dos
primeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor
representava suas desumanização como bestas de carga. Nesse conflito de vida ou
morte, os índios de um lado e os colonizadores do outro punham todas as suas
energias, armas e astúcias. Entretanto, cada tribo, lutando por si, desajudada
pelas demais – exceto em umas poucas ocasiões em que se confederaram, ajudadas
pelos europeus que viviam entre elas – pôde ser vencida por um inimigo pouco
poderoso mas superiormente organizado, tecnologicamente mais avançado e, em
consequência, mais bem armado.
As
vitórias européias se deveram principalmente à condição evolutiva mais alta das
incipientes comunidades neobrasileiras, que lhes permitia aglutinar-se em uma
única entidade política servida por uma cultura letrada e ativada por uma
religião missionária, que influenciou poderosamente as comunidades indígenas.”
(ibidem, p. 49)
II)
Gestação Étnica
Fixando-se
ao longo da costa, os portugueses fazem uso da instituição indígena do
“cunhadismo” com o objetivo de recrutar braços para a exploração econômica da
terra e para o combate às tribos hostis. Tomam tantas esposas índias quanto
lhes era possível, estabelecendo assim uma rede de parentesco – centenas de
sogros, cunhados, genros – essencial à realização de seus propósitos. Tal
processo, para Ribeiro, além de constituir o principal motor de povoamento e
colonização do novo ambiente, terminaria por engendrar o núcleo e a base
fundamental do que, no futuro, constituiria a etnia brasileira: uma infinidade
de “mamelucos”, gerados no ventre índio a partir do sêmen branco, dotados de
uma identidade própria que os diferenciava, por negação, tanto de seus pais
portugueses quanto de suas mães índias:
“Assim
é que, por via do cunhadismo, levado ao extremo, se criou um gênero humano novo
que não era, nem se reconhecia e nem era visto como tal pelos índios, pelos
europeus e pelos negros. Esse gênero de gente alcançou uma eficiência
inexcedível, a seu pesar, como agentes da civilização. Falavam sua própria
língua, tinham sua própria visão de mundo, dominavam um alta tecnologia de
adaptação à floresta tropical. Tudo isso aurido de seu convívio compulsório com
os índios de matriz tupi.” (ibidem, p. 109)
Trazidos
da costa ocidental da África, os negros terminam por se integrar a esta célula
original Tupi, sem reter, entretanto, uma herança cultural tão rica quanto a
indígena. Tal fato se deveria à diversidade linguística e cultural das tribos
traficadas para o Brasil, muitas delas hostis entre si. Esta “Babel” – segundo
as palavras de Ribeiro –, submetida ao regime degradante do engenho, é
compelida a se integrar passivamente ao universo cultural da nova sociedade, ainda
que retendo para si inúmeros focos de resistência no campo da música, da
culinária e da religião. Mas desempenharia dois papéis fundamentais: atuar como
difusores da língua portuguesa, aprendida no duro trato com o capataz, a partir
dos dois focos dinâmicos da economia colonial onde estavam fixados – o Nordeste
açucareiro e a região das minas; dar origem, mesclando-se aos brancos, ao
enorme contigente de mulatos que seria, somado aos mamelucos, um dos alicerces
da ainda incipiente “brasilianidade”:
“Esses
mulatos ou eram brasileiros ou não eram nada, já que a identificação com o
índio, com o africano ou com o brasilíndio era impossível. Além de ajudar a
propagar o português como língua corrente, esses mulatos, somados aos
mamelucos, formaram logo a maioria da população que passaria, mesmo contra sua
vontade, a ser vista e tida como gente brasileira.” (ibidem, p. 128)
“O
brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente
falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade
de não-índios, não-europeus e não negros, que eles se vêem forçados a criar sua
própria identidade étnica: a brasileira.” (ibidem, p. 130)
“Trata-se,
em essência, de construir uma representação co-participada como uma nova
entidade étnica com suficiente consistência cultural e social para torná-la
viável para seus membros e reconhecível por estranhos pela singularidade
dialetal de sua fala e por outras singularidades. Precisava, por igual, ser
também suficientemente coesa no plano emocional para suportar a animosidade
inevitável de todos os mais dela excluídos e para integrar seus membros numa
entidade unitária, apesar da diversidade interna dos seus membros ser
frequentemente maior que suas diferenças com respeito a outras etnias.”
Constituem-se
assim os núcleos “neobrasileiros” – entidades com ramificações rurais e
urbanas, fortemente hierarquizadas, estratificadas, comandadas a partir da
metrópole e integradas à economia mundial. Resultado do que Ribeiro identifica
como um “salto evolutivo” em relação à matriz tupi, estas novas comunidades são
agora capazes de “abranger maior número de membros do que as aldeias indígenas,
liberando parcelas crescentes deles das tarefas de subsistência para o
exercício de funções especializadas” (ibidem, p.121). Nelas, o povo brasileiro
em germinação não teria acesso a funções de mando, executadas por uma camada
superior, composta de três setores letrados:
“Tais
eram: uma burocracia colonial comandada por Lisboa, que exercia funções de
governo civil e militar; outra religiosa, que cumpria o papel de aparato de
indoutrinação e catequese dos índios e de controle ideológico da população sob
a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, que viabilizava a economia de
exportação, representada por agentes de casas financeiras e de armadores,
atenta aos interesses e às ordens dos portos europeus importadores de artigos
tropicais. Esses três setores, mais seus corpos de pessoal auxiliar, instalados
nos portos, constituíram o comando da estrutura global. (...) Era, de fato, uma
subestrutura da rede metropolitana européia, menos independente de seus demais
componentes, porque estava intermediada por Lisboa.” (ibidem, p. 125)
A
partir destes núcleos iniciais, tem início um vertiginoso processo de aumento
da população e ocupação territorial. O “arquipélago de implantes coloniais,
ilhados e isolados uns dos outros por distâncias de milhares de quilômetros”
(ibidem, p. 156) transforma-se, com o passar dos anos, em um continente
compacto, articulado cultural e comercialmente em decorrência do surto
minerador. A dizimação dos índios prossegue. Ribeiro aponta o intenso processo
de “desindianização” que se dá em nossas terras, acompanhado do crescimento da
população mameluca – herança do cunhadismo – e mulata – fruto do acasalamento
entre escravos e senhores. Inverte-se, assim, nossa composição populacional. Os
mestiços são agora maioria.
A
“segunda invasão portuguesa”(ibidem, p. 157), com a vinda de 20 mil membros da
corte Lusa para o Brasil, representou outro estímulo à integração. “O Brasil
que nunca tivera universidades recebe de abrupto toda uma classe dirigente
competentíssima que, naturalmente, se faz pagar se apropriando do melhor que
havia no país. Mas nos ensina a governar.” (ibidem, p. 157). Étnica e
economicamente integrado, consolida-se assim, em fins do séc. XIX, o povo
brasileiro – ainda na condição de “proletariado externo”:
“O
resultado fundamental dos três séculos de colonização e dos sucessivos projetos
de viabilização econômica do Brasil foi a constituição dessa população – de 5
milhões de habitantes, umas das mais numerosas das Américas de então –, com a
simultânea deculturação e transfiguração étnica das suas diversas matrizes
constitutivas. (...) O produto real do processo de colonização já era, naquela
altura, a formação do povo brasileiro e sua incorporação a uma nacionalidade
étnica e economicamente integrada. Esse último resultado parece haver sido
alcançado umas décadas antes, quando quase todos os núcleos brasileiros já se
integravam em uma rede comercial interna e esta passara a ser mais importante
que o mercado externo. Os revezes experimentados pelas diversas economias
regionais de exportação e a consequente queda do poderio do empresariado
latifundiário e monocultor pareceram abrir aos brasileiros, naquele momento, a
oportunidade de se estruturarem como um povo que existisse para si mesmo. Isso
talvez tivesse ocorrido se não surgisse um novo produto de exportação – o café
–, que viria articular toda a força de trabalho para um novo modo de integração
no mercado mundial e de reincorporação dos brasileiros na condição de
proletariado externo.” (ibidem, p. 159)
Em
síntese:
“Quisesse
ou não, o Brasil era um componente marginal e dependente da civilização
agrário-mercantil em vias de se industrializar. Dentro de quaisquer desses
tipos de civilização, o fracasso de uma linha de produção exportadora só
incitava a descobrir outra linha que, substituindo-a, revitalizasse a economia
colonial, fortalecendo, em consequência, a dependência externa e a ordenação
oligárquica interna” (ibidem, p. 160)
III)
Processo sociocultural
Mas
a gestação do “povo novo” não se fez sem conflitos. Ribeiro investe contra a
idéia de uma suposta “cordialidade” inerente ao “pacífico” e “gentil” povo
brasileiro. E passa a elencar as inúmeras “guerras do Brasil” (ibidem, p.167)
Os
conflitos que acompanharam nossa formação teriam assumido variadas dimensões –
étnica, social, econômica, religiosa, racial, etc. – e dificilmente poderiam
ser observados em uma forma “pura”. Cada embate traria consigo múltiplas
dimensões, exigindo, assim, um olhar atento à sua determinação predominante. O
autor enumera alguns exemplos: a luta dos cabanos, de caráter marcadamente
inter-étnico; a guerra de Palmares, de contornos raciais; o conflito de Canudos,
de corte étnico, classista e racial.
Se
nosso povo se plasmou, de fato, na guerra, a colonização não deixou de
constituir também um empreendimento – ou uma “empresa”, nas palavras do autor,
“No
plano econômico, o Brasil é produto da implantação e da interação de quatro
ordens de ação empresarial, com distintas funções, variadas formas de
recrutamento da mão-de-obra e diferentes graus de rentabilidade. A principal
delas, por sua alta eficácia operativa, foi a empresa escravista, dedicada seja
à produção de açúcar, seja à mineração de ouro, ambas baseadas na força de
trabalho importada da África. A segunda, também de grande êxito, foi a empresa
comunitária jesuítica, fundada na mão-de-obra servil dos índios. Embora
sucumbisse na competição com a primeira, e nos conflitos com o sistema
colonial, também alcançou notável importância e prosperidade. A terceira, de
rentabilidade muito menor, inexpressiva como fonte de enriquecimento, mas de
alcance social substancialmente maior, foi a multiplicidade de microempresas de
produção de gêneros de subsistência e de criação de gado, baseada em diferentes
formas de aliciamento de mão-de-obra, que iam de formas espúrias de parceria
até a escravização do indígena, crua ou disfarçada.” (ibidem, p. 176). Mas a
competição entre tais empreendimentos também era acompanhada pela
interdependência:
“Na
realidade, competindo embora, essas três formas de organização empresarial se
conjugavam para garantir, cada qual no desempenho de sua função específica, a
sobrevivência e o êxito do empreendimento colonial português nos trópicos. As
empresas escravistas integram o Brasil nascente na economia mundial e asseguram
a prosperidade secular dos ricos, fazendo do Brasil, para eles, um alto
negócio. As missões jesuíticas solaparam a resistência dos índios, contribuindo
decisivamente para a liquidação, a começar pelos recolhidos às reduções, afinal
entregues inermes a seus exploradores. As empresas de subsistência viabilizaram
a sobrevivência de todos e incorporaram os mestiços de europeus com índios e
negros, plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro. Foram,
sobretudo, um criatório de gente.” (ibidem, p. 117)
A
articulação, organização e controle da imensa “empresa Brasil” seria
assegurada, por sua vez, pelas cúpulas empresarial e burocrática.
“Sobre
essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora, uma quarta,
constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de
importação e exportação. Esse setor parasitário era, de fato, o componente
predominante da economia colonial e o mais lucrativo dela. Ocupava-se das mil
tarefas de intermediação entre o Brasil, a Europa e a África no tráfico
marítimo, no câmbio, na compra e venda, para o cumprimento de sua função
essencial, que era trocar mais da metade do açúcar e do ouro que aqui se
produzia por escravos caçados na África, a fim de renovar o sempre declinante
estoque de mão-de-obra necessário para sua produção” (ibidem, p. 178)
“Tratamos
até agora das cúpulas empresariais. Elas seriam inexplicáveis, porém, sem a sua
contraparte, que era o patriciado burocrático. Toda a vida colonial era
presidida e regida, de fato, pela burocracia civil de funcionários
governamentais e exatores, e pela militar dos corpos de defesa e repressão. A
seu lado, operando de forma solidária, estava a burocracia eclesiástica dos
servidores de Deus, consagrando, dignificando os que se ocupavam dos negócios
terrenos, sobretudo captando a maior parte dos recursos que ficavam na terra,
para com eles exaltar a grandeza de Deus nas casas e templos de suas ordens.
Essa cúpula patricial, cuja elite era toda oriunda da metrópole, formava com a
cúpula empresarial e, com a mercantil, a elite dominante da colônia,
essencialmente solidária frente aos outros corpos da sociedade, apesar de suas
cruas oposições de interesses.” (ibidem, p.178)
Configurada
assim desde os primórdios da “empresa Brasil”, tal estratificação social se
perpetuará ao longo dos séculos. As mudanças que sofrerá constituirão muito
mais uma renovação, adaptação ou até mesmo reinvenção de sua estrutura
cúpulas-bases do que uma ruptura radical com uma ordem solidamente
cristalizada:
“Nossa
tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas
mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da
riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujo mando decorre do
desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical
e tantíssimos outros. Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e
cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além da riqueza, o
poder de determinar o destino alheio.” (ibidem, p.208)
“Nas
últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula. É o
estamento gerencial das empresas estrangeiras, que passou, que passou a
constituir o setor predominante das classes dominantes. Ele emprega os
tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública.
Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada
vez mais desabrida.” (ibidem, p. 208)
“Abaixo
dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas de pequenos oficiais,
profissionais liberais, policiais, professores, o baixo clero e similares.
Todos eles propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar
disso alguma vantagem. Dentro dessa classe, entre o clero e os raros
intelectuais, é que surgiram os mais subversivos em rebeldia contra a ordem. A
insurgência mesmo foi encarnada por gente de seus estratos mais baixos. Por
isso mesmo mais padres foram enforcados do que qualquer categoria de gente.”
(ibidem, p. 209)
“Seguem-se
as classes subalternas, formadas por um bolsão da aristocracia operária, que
têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadores especializados, e por outro
bolsão que é formado por pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de
grandes propriedades rurais etc.” (ibidem, p. 209)
“Abaixo
desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango das classes sociais
brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais,
principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade.
São os enxadeiros, os bóias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas
domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de
organizar-se para reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o
que sendo impraticável, os situa na condição de classe intrinsecamente
oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes.
Desfazer a sociedade para refazê-la” (ibidem, p. 209)
“Essa
estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um sistema
autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são as classes
dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as classes intermédias. Seu núcleo
mais combativo, as classes subalternas. E seu componente majoritário são as
classes oprimidas, só capazes de explosões catárticas ou de expressão indireta
de sua revolta. Geralmente estão resignadas com seu destino, apesar da
miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade de organizar-se e enfrentar
os donos do poder.” (ibidem, p. 209)
“Essa
configuração de classes antagônicas mas interdependentes organiza-se, de fato,
para fazer oposição às classes oprimidas – ontem escravos, hoje subassalariados
– em razão do pavor pânico que infunde a todos a ameaça de uma insurreição
social generalizada.” (ibidem, p. 210)
Em
meio a uma estratificação que se perpetua, qual o caráter de nossas
instituições republicanas?
“Dentro
desse contexto social jamais se puderam desenvolver instituições democráticas
com base em formas locais de autogoverno. As instituições republicanas,
adotadas formalmente no Brasil para justificar novas formas de exercício do
poder pela classe dominante, tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a
própria camada proprietária. No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou
o senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talante as funções de repressão
policial, as instituições da propriedade na Colônia, no Império e na República,
exerceu desde sempre um poderio hegemônico” (ibidem, p. 218)
“A
sociedade resultante tem incompatibilidades insanáveis. Dentre elas, a
incapacidade de assegurar um padrão de vida, mesmo modestamente satisfatório,
para a maioria da população nacional; a inaptidão para criar uma cidadania
livre e, em consequência, a inviabilidade de instituir-se uma vida democrática.
Nessas condições ,a eleição é uma grande farsa em que massas de eleitores
vendem seus votos àqueles que seriam seus adversários naturais. Por tudo isso é
que ela se caracteriza como uma ordenação oligárquica que só se pode manter
artificiosa ou repressivamente pela compressão das forças majoritárias às quais
condena ao atraso ou à pobreza.” (ibidem, p. 219)
“Não
é por acaso, pois, que o Brasil passa de colônia a nação independente e de
Monarquia a República, sem que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo
perceba. Todas as nossas instituições políticas constituem superafetações de um
poder efetivo que se mantém intocado: o poderio do patronato fazendeiro.”
(ibidem, p. 219)
Síntese:
o arcaico e o moderno - Arcaísmo e modernidade. Talvez a chave para a
compreensão do pensamento de Darcy Ribeiro resida na relação, muitas vezes
conflituosa, entre estes dois pólos. O caráter de “povo novo” dos brasileiros –
o fato de serem resultado da deculturação e transfiguração étnica de três
matrizes distintas – os teria transformado em homens “tábula rasa”, prontos a
absorver as forças renovadoras da Revolução Industrial. As antigas bandeiras
mamelucas que se difundiram por todo o território nacional terminaram por
engendrar um povo de grande homogeneidade étnica, receptivo à mudança, aberto
ao diálogo entre suas ilhas de “modernidade” e seus bolsões “atrasados”:
“Esse
é o resultado fundamental do processo de deculturação das matrizes formadoras
do povo brasileiro. Empobrecido, embora, no plano cultural com relação a seus
ancestrais europeus, africanos e indígenas, o brasileiro comum se construiu
como homem tábua rasa, mais receptivo às inovações do progresso do que o
camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal.”
(ibidem, p. 249)
Se
nossa origem e especificidade, portanto, nos colocaram na ante-sala da
modernidade, quais as razões para o nosso atraso frente aos países centrais?
Ou, retomando a pergunta inicial de seu livro: “por que o Brasil ainda não deu
certo?”
“A
resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental
de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou no caráter arcaico de
sua cultura, mas na resistência das classes dominantes. Particularmente nos
seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num
modo infeliz de articulação com a economia mundial, que atuam como fator de
atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança
Esse é o caso da propriedade fundiária, incompatível com a participação
autônoma das massas rurais nas formas modernas de vida e incapaz de ampliar as
oportunidades de trabalho adequadamente remuneradas oferecidas à população. É
também o caso da industrialização recolonizadora, promovida por corporações
internacionais atuando diretamente ou em associação com os capitais nacionais.
Embora modernize a produção e permita a substituição das importações, apenas
admite a formação de um empresariado gerencial, sem compromissos outros que não
seja o lucro a remeter a seus patrões. Estes se fazem pagar preços extorsivos,
onerando o produto do trabalho nacional com enormes contas de lucros e
regalias. Seu efeito mais danoso é remeter para fora o excedente econômico que
produzem, em lugar de aplicá-lo aqui. De fato, ele se multiplica é no
estrangeiro.” (ibidem, p. 250)
“A
mais grave dessas continuidades reside na oposição entre os interesses do
patronato empresarial, de ontem e de hoje, e os interesses do povo brasileiro.
Ela se mantém ao longo de séculos pelo domínio do poder institucional e do
controle da máquina do Estado nas mãos da mesma classe dominante, que faz
prevalecer uma ordenação social e legal resistente a qualquer processo
generalizável a toda a população. Ela é que regeu a economia colonial,
altamente próspera para uma minoria, mas que condenava o povo à penúria. Ela é
que deforma, agora, o próprio processo de industrialização, impedindo que
desempenhe aqui o papel transformador que representou em outras sociedades.
Ainda é ela que, na defesa de seus interesses antinacionais e antipopulares,
permite a implantação das empresas multinacionais, através das quais a
civilização pós-industrial se põe em marcha como um mero processo de
atualização histórica dos povos fracassados na história.” (ibidem, p. 251)
“Modernizada
reflexamente, apesar de jungida nessa institucionalidade retrógrada, a
sociedade brasileira não conforma um remanescente arcaico da civilização
ocidental, cujos agentes lhe deram nascimento, mas um dos seus ‘proletariados
externos’, conscritos para prover certas matérias-primas e para produzir lucros
exportáveis. Um proletariado externo atípico com respeito aos protagonistas
históricos, assim designados por Toynbee (1959), porque não possui uma cultura
original e porque sua própria classe dirigente é o agente de sua dominação
externa.”
Em
síntese:
“Nós,
brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo
mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou
pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de
nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si,
afundada na ‘ninguendade’. Assim foi até se definir como uma nova identidade
étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de
seu destino.”
REFERÊNCIAS E FONTES DE PESQUISA:
Academia
Brasileira de Letras – ABL http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=438&sid=158
Casa do Bruxo -
http://www.casadobruxo.com.br/
Senado
Federal
- http://www.senado.gov.br/senadores/senadores_biografia.asp?codparl=15
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