Denomino saberes culturais o acervo de conhecimentos,
entendimentos, realizações, progressos, regressões, utopias, desencantamentos
resultantes de uma aventura que nós construímos no planeta Terra, que já
ostenta a longínqua data de cerca de 130 mil anos. As sociedades humanas, tal
como as conhecemos hoje, são o produto de uma longa evolução que possibilitou a
um pequeno bípede, com um cérebro muito assemelhado ao de um chimpanzé, e ainda
mais ao de um bonobo, criar cognições, transmiti-las, codificá-las,
acumulá-las, por vezes mesmo destruí-las.
Desde que o mundo passou a ser explicado pela ciência, instituiu-se uma
fronteira entre humanos e não humanos que nunca foi suficientemente
explicitada. Essa divisão entre animalidade e humanidade tornou-se responsável
pelas infinitas definições que o conceito de cultura assumiu, principalmente do
final do século 19 até os dias atuais, assim como pelo divórcio entre filosofia
e ciência, entre ciências da natureza e ciências da sociedade.
O arrogante pensamento domesticado, moderno, científico, consolidou-se a partir
do século XV e assumiu contornos mais nítidos a partir do iluminismo, que
instalou a crença de que a razão é o único caminho possível para se atingir o
conhecimento do mundo. Cercado de certezas, leis, determinismos, causalidades,
teleologias, deixou de lado a preocupação com a totalidade, com a intuição, com
o imaginário, passando a se concentrar no entendimento do fragmento, da parte,
supondo que, pelo conhecimento da razão e do cálculo, seria possível atingir
uma objetividade integral e plena, sem parêntesis.
Com isso, virou a costa para o sujeito, para a incerteza e a complementaridade,
privatizou terras e mares, considerou magias e mitos como algo irracional,
produto descartável criado pela mente obscura de selvagens, ou por alucinações
de civilizados, saudosos de um suposto estado de natureza no qual os homens
teriam sido mais íntegros e felizes. A diminuição da distância intelectual,
cognitiva, afetiva e mesmo sexual entre primatas humanos (nós) e primatas não
humanos (chimpanzés, orangotangos, gorilas, bonobos) exige, agora, que o
conceito de cultura passe a ser visto de modo menos excludente. Esse fato
trouxe consigo a idéia de que a cultura e a linguagem não são mais privilégios
nossos.
Abalos em nosso irremediável narcisismo já foram diagnosticados, desde que
soubemos que a terra não era o centro do universo, que não viemos do mesmo e
sim do outro, e que somos habitados por linguagens, gestos, atitudes, pulsões
que escapam ao controle consciente explícito. Talvez agora nos defrontemos com
a constatação que não somos os únicos seres vivos produtores de cultura, esse
conjunto complexo de saberes que acionamos para enfrentar os desafios dos
ecossistemas que nos circundam e desafiam. Não seria arrogante supor que fomos
atingidos por uma quarta ferida narcísea.
Semelhantes e diferentes, universais e particulares, dependentes e
interdependentes, produzimos diferenças locais que não são ilhas incomunicáveis
de um arquipélago, mas um continente de objetos complexos, cercado de
emergências e dissipações saturadas de uma universalidade construída ao longo
de um processo evolutivo não linear, que envolveu perdas e ganhos, avanços e
recuos, intolerâncias e solidariedades.
Natureza e cultura não constituem mais dualidades excludentes. É preciso
acionar os operadores da recursividade, da dialógica e do holograma sugeridos
pelo pensamento complexo, para passar a enxergar a natureza na cultura e
vice-versa. Somos naturais porque inscritos numa complexa ordem biológica;
somos culturais porque capazes de elaborar estratégias de sobrevivência e
adaptação, a curto, médio e longo prazos, onde quer que nos encontremos. Em
resumo, e a ideia é de Edgar Morim, somos 100% natureza e 100% cultura. Melhor
dizendo, seres vivos uniduais, carregamos conosco uma trajetória onto e
filogenética milenar, portadores de um vasto acervo cultural constituído pela
memória coletiva de espécie.
Porque falamos, comunicamos, planejamos, calculamos, competimos, amamos e
odiamos, passamos a nos auto-atribuir uma superioridade ímpar perante os demais
seres vivos. Em cada um de nós existe, porém, algo que escapa a essas
características normais, sistemáticas e prosaicas demais. Sim, a cada momento,
aqui e agora, somos invadidos por delírios, sonhos, excessos, loucuras,
descomedimentos, desejos que nos escapam e que habitam os porões da alma.
Treinados pela educação familiar e escolar a afastá-los de nossa imaginação e
recalcá-los em nossa psique, temos que reaprender a conviver e dialogar com
eles escutá-los com atenção analítica, meditar sobre eles como se estivéssemos
em silêncios monásticos, introjetar em nossas mentes que somos sábios e loucos,
unos e múltiplos, duplos, triplos, quádruplos, e que é exatamente esse
componente dialógico, instável e incerto, que viabilizará, sem excessos e
ressentimentos, processos civilizatórios solidários e procedimentos educativos
religados. Sapiens demens, eis nossa condição imanente irrevogável, que nos
permitirá viver, sobreviver, afrontar e, talvez superar, a insignificância dos
mal-estares pós-modernos, comandados pela unidimensionalidade da tecnociência,
pela compulsão da conectividade, pela desrazão da política, pela insuficiência
dos afetos.
Precisamos de um novo sujeito do conhecimento, que não seja tecnofóbico nem
tecnofílico, e muito menos antropofóbico, que reconheça o papel das tecnologias
do infinitesimal, mas admita a força propulsora e antecipatória das múltiplas
criações do imaginário. O planeta tem urgência de ser mais integrativo e
interdependente. Se fosse possível traduzir essa meta ponto de vista numa
planilha de valores universais, poderíamos assumir a conservação no lugar da
destruição, a cooperação no lugar da competição, a partilha no lugar da
concentração, a inclusão no lugar da exclusão, a solidariedade no lugar da
xenofobia, a sustentabilidade ecológica no lugar do desenvolvimento tecnológico
predatório, a paz no lugar da guerra.
A UNESCO, ao promover os quatro pilares da educação para o século XXI em torno
de quatro formas de aprendizagem, a saber, conhecer, fazer, viver junto e ser,
estava certamente imbuída da idéia de que a humanidade, a Terra-Pátria, não
pode ser concebida como um meio excuso de obter lucros e vantagens, mas como um
fim a ser construído por todos e para todos. Trata-se de um processo de
aprendizagem complexo, a ser exercitado não apenas nas escolas, mas na vida em
geral. Um amplo programa co-participativo, restaurador do homem genérico que
envolve princípios, valores, utopias e um contrato planetário, simultaneamente
natural e sócio-cultural, no qual animais e homens, natureza e cultura, real e
imaginário não se separem nunca mais.
Traduzir esses pilares para o cotidiano das salas de aula não é tarefa fácil,
dadas as condições e contradições em que o ensino se encontra, debatendo-se,
desde sempre, entre uma utopia democrática, a escola para todos, e uma
realidade meritocrática, a escola para alguns poucos. Além disso, a
fragmentação disciplinar, empenhada apenas em transmitir conteúdos e garantir
profissionais para um escasso mercado de trabalho, esquece-se que a refundação
do sujeito responsável exigida pela sociedade do conhecimento requer como ponto
de partida a religação e circulação dos saberes, cabeças bem-feitas sempre
aptas a contextualizar, como pretendia Montaigne, e não cabeças feitas que se
empenham em conhecer apenas os contornos limitados de sua especialização, como
advogam os arautos da especialização delirante.
A contemporaneidade da educação, em qualquer nível em que se exerça, deve
empenhar-se, de agora em diante, em concentrar esforços sintonizados na
construção de saberes universalistas que não neguem nenhuma forma de
diversidade, na formação de pensadores indisciplinados, revoltados mesmo,
capazes de enfrentar os desafios do conhecimento e criar novas formas de
entendimento do mundo a serem vialibilizadas e planejadas para a incerteza dos
tempos futuros.
A dupla função da educação consiste em acoplar necessidades básicas de
formações e competências, com atitudes metaprofissionais sintonizadas com a
natureza, a cultura e o cosmo. Se as formas da gestão educacional, em sua quase
totalidade, favorecem apenas a replicação de um modelo pedagógico fechado e
endogâmico, qualquer esforço de reforma, ou mesmo de revolução dos pressupostos
da educação, deve conter a transdisciplinaridade como horizonte necessário e a
transversalidade de métodos, conceitos e teorias como foco primordial.
As inquietações expostas por Karl Marx em sua terceira tese sobre Feuerbach
revelam-se mais que atuais nesses tempos sombrios que experimentamos. Se
concordarmos com a assertiva de que qualquer teoria da mudança das
circunstâncias sócio-históricas e da educação requer antes de tudo a educação
dos educadores, é preciso agir rápido antes que seja tarde demais. Como fazer
isso? Fomentando a identidade entre ciências e artes, ciências e tradições,
razão e sensibilidades, artes e espiritualidades. Esse deve ser o protocolo
intencional mínimo de qualquer governo, partido, da sociedade civil em seu
conjunto.
A substituição da compulsão por critérios disciplinares e quantitativos de
avaliação, pela pulsão por sabedorias transversais qualitativas e polifônicas é
um bom caminho para estimular novas conexões entre professores e alunos,
supervisores e diretores, escolas do primeiro e segundo graus, faculdades,
universidades, centros de pesquisa. A educação dos educadores tem de
reconhecer, e assumir, que a função escolar, em qualquer nível em que se
exerça, empenha-se sempre em fomentar complexas conexões, de um lado entre
presente, passado e futuro, de outro, entre indivíduo, sociedade e cosmo.
Mesmo que seja reconhecido que a transdisciplinaridade já é praticada na
ecologia, na cosmologia e nas ciências da terra, o desafio de qualquer reforma
reside em não sepultar a figura do especialista, mas apostar na viabilidade da
formação de educadores sistêmicos, polivalentes, abertos, mestiços,
arlequinados, reflexivos, críticos, exílicos, amorosos, utópicos. Os sete
saberes propostos por Edgar Morin para a reforma do ensino médio francês, ainda
que não tenham sido implementados, poderiam propiciar um bom começo para se
repensar a educação no Brasil, se aplicados e problematizados em todas as áreas
do pensamento e em todos os níveis do ensino, privado, público ou comunitário.
As cegueiras do conhecimento, as pertinências das certezas objetivas, as
intermitências da condição humana, os percalços da identidade terrena, as
incertezas das descobertas e mutações cognitivas, os obstáculos da compreensão
e da tolerância interculturais, o futuro da antropoética enquanto destino
planetário deve ser problematizado aqui e agora como saberes reitores,
operadores cognitivos a serem movimentados por pensadores empenhados em
repensar os rumos que as instituições de ensino e pesquisa tomarão daqui para
frente.
Se for preciso que o princípio da incerteza racional contamine a todos, que
isso seja feito e assumido sem maiores delongas. A sociedade tem que
desobedecer ao paradigma do ocidente, disjuntor do sujeito e do objeto, para
que o pensamento selvagem, intuitivo e imaginal assumam seu devido lugar.
Precisamos aprender a religar a parte e o todo, o texto e contexto, o global e
local, o universal e o planetário, para que os paradoxos gerados pelo
globalismo tecnoeconômico sejam equacionados de modo altivo e determinados.
Assumir que a educação do futuro deve conter como preceito inegociável a ética
da compreensão planetária implica em entendê-la não como um conjunto de
proposições abstratas, ou como regras formais de uma moralidade outorgada pelos
donos do poder, mas como atitude deliberada de todos aqueles que acreditam na
efetivação da cultura de paz, na construção de solidariedades nacionais e transnacionais,
na consolidação das democracias, na efetiva colaboração entre todas as culturas
da Terra.
A pretendida religação dos saberes não é algo intransponível, inaplicável,
utópico. Com vontade política, desapego individualista, abertura cognitiva e consciência
espiritual não seria impensável admitir que a educação sustentável é a única
saída para nosso futuro. É preciso ir além das leis de equilíbrio e ordem,
assim como das regulações que os paradigmas do mercado e da informação tentam
impor a todos. Seria ideal assumir que o futuro será sempre indeterminado,
composto por uma infinidade de fluxos, brechas, desordens, pontos de fuga, e
que, por isso mesmo, a emergência de uma nova aliança entre mundo físico, mundo
biológico e mundo cultural constitui o pressuposto irreversível, crucial,
inadiável, a ser posto em marcha por uma educação que se paute pela
sustentabilidade ecológica, pela co-dependência entre todos os seres vivos e
pela preservação da memória cultural da humanidade.
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