domingo, 16 de março de 2014

Subjetividade e Traseiros Dominicais

Quando, em 1950, Chateaubriand introduziu a televisão no Brasil, com certeza não imaginava as possibilidades quase bélicas de aniquilamento mental que ele trazia. Num país como o Brasil, cuja cultura impressa tem menor penetração, a televisão ocupa um lugar de importância descomunal. É, de fato, a mais eficiente fábrica de opiniões e tendências. Nem Pavlov, Watson e Skinner juntos conseguiriam tamanho poder de condicionamento, e Charcot não acharia a mínima graça na hipnose se houvesse vivido em tempos de televisão. 
A subjetividade é sempre fabricada. Desde o nascimento, cada indivíduo vai sofrendo mil interações que acabam construindo seu modo de funcionar. Tal dinamismo inicia-se com os pais, irmãos e familiares próximos. O núcleo familiar é o primeiro a "ensinar". Na família, a criança aprende, principalmente, a sobreviver. Logo depois, começa a se relacionar com a sociedade de forma mais ampla, A escola, os amigos e o trabalho oferecem mais substância ao repertório original. Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se chegar à conclusão de quão fácil é "subjetivar-se", afinal, o processo de individualização, a partir do outro, é constante. O fato é que, nos tempos atuais, há um "outro" chamado televisão, que ensina muito mais rapidamente que o próprio círculo humano que envolve cada indivíduo. 
O fenômeno televisivo no Brasil é tão surpreendente que, num passado bem próximo, grande parte da população passou a pautar horários pela necessidade de acompanhar a novela e os programas infantis; muitas empresas suspendem o trabalho na hora da transmissão da Copa do Mundo e a padronização da fala dos atores de televisão levou à extensão, para todo o país, do modo de falar carioca, agora influente, inclusive, em outros países de língua portuguesa. Isso é prova da capacidade deste instrumento para fabricar subjetividades. Nem é preciso ser um bom observador para notar o vestiário "novelístico" e o vocabulário "malhação". Um estudo de Marilena Chauí comenta a escalada de Fernando Collor até a Presidência da República. Quando ainda governador de Alagoas e um desconhecido para a maioria da população brasileira, Collor começou a aparecer sucessivamente na televisão até a época de sua eleição. No início, uma vez por semana, depois duas, três, quatro. A televisão, enfim, modela mais comportamentos do que é capaz uma infinidade de caixas de Skinner. 
Contudo, não se deve cair no erro de culpar a televisão por todas as catástrofes culturais do país. A ignorância é o fator preponderante. A educação é a base. Os indivíduos bem educados, no sentido de conhecimento, no mínimo - desculpem o trocadilho - veria a televisão com outros olhos. Há, de fato, uma boa gama de programas instrutivos, porém, estes não são acessíveis à população menos abastada e excluída, por conta do seu repertório intelectual. Um sujeito que tenha tão - somente o ensino fundamental com certeza preferirá assistir aos traseiros no programa do Gugu a uma entrevista no programa do Antônio Abujamra. Assim, entra-se num círculo vicioso. A sociedade capitalista precisa do consumo, que precisa da televisão, que precisa da ignorância para manter seu poder de formação de subjetividades. 
Deste modo, uma boa conduta dos pais, a fim de proteger seus filhos da "televisão ruim", seria a leitura e mostrar os caminhos interessantes que mesmo a televisão pode oferecer. Afinal, até mesmo um traseiro dominical poder ser instrutivo se o senso crítico do indivíduo for bem desenvolvido.

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