Sartre iniciou a sua atividade de
filósofo com as investigações sobre psicologia "fenomenológica" tendo
por objeto o eu, a imaginação e as emoções. O ponto de partida destas pesquisas
era já a noção de intencionalidade da consciência, mas Sartre opõe-se desde
início a Husserl pela sua interpretação existencialista desta noção. O ensaio
sobre A Transcendência do Ego começa pela afirmação de que "o eu não é um
habitante da consciência”
1. que
ele "não está na consciência, nem formalmente nem materialmente, mas sim
fora , no mundo: é um ente do mundo como o eu de um outro".
2. E
conclui, opondo à tese de Husserl sobre a apoditicidade do eu, que o meu eu não
é mais evidente para a consciência do que o eu de um outro, e que o eu e o
mundo são dois objetos de uma consciência absoluta e impessoal que é
simplesmente "a primeira condição e a fonte absoluta da existência".
3. Com
esta posição Sartre situa-se já fora do subjetivismo ou idealismo
transcendental de Husserl. No ensaio sobre a Teoria das Emoções a consciência é
entendida como "ser no mundo " e a emoção, como modo de ser da
consciência, é interpretada como uma modificação mágica do mundo, isto é, uma
modificação destinada a combater os perigos e os obstáculos do mundo sem
instrumentos ou utensílios, com uma modificação maciça ou total do próprio
mundo. A emoção surge quando "o mundo dos utensílios desaparece de
improviso e o mundo mágico comparece em seu lugar".
4. ela,
por isso, "não é um acidente mas um modo de existência da consciência, uma
das modalidades em que compreende o seu ser no mundo.
5. Analogamente,
a análise fenomenológica da imaginação conduz Sartre a reconhecer as seguintes
condições que tornam possível a imaginação: “Para formar imagens a consciência
deve ser livre em relação a todas as realidades particulares e esta liberdade
deve poder definir-se como um ser no mundo que é simultaneamente constituição e
aniquilação do mundo; a situação concreta da consciência no mundo deve, em cada
instante, servir de motivação singular à constituição do irreal. Assim, o
irreal deve sempre ser constituído sobre o fundo do mundo que nega, ficando bem
ausente, por outro lado, que o mundo não se presta apenas a uma intuição
representativa e que este fundo sintético necessita simplesmente de ser vivido
como situação”.
6. A
consciência como ser no mundo, a consciência nas situações, o mundo como mundo
de utensílios, são os principais conceitos que Sartre utilizava nas suas
análises fenomenológicas; mas são conceitos que, nesta forma, deixam de
pertencer à fenomenologia para pertencerem à análise existencial, que é
precisamente aquela que se relaciona com o ser do mundo. Desde as suas
primeiras obras, Sartre não foi um fenomenólogo, mas um existencialista. A ontologia da consciência
entendida como ser no mundo é o fim nítido da principal obra de Sartre O Ser e
o Nada. A consciência é em primeiro lugar consciência de qualquer coisa e de
qualquer coisa que não é consciência. Sartre chama a este qualquer coisa
ser-em-si. O ser-em-si só pode descrever-se analiticamente como "o ser que
é aquilo que é", expressão que torna clara a sua opacidade, o seu caráter
maciço e estático devido ao qual não é nem possível nem necessário, é pura
positividade, é simplesmente".
7.
Relativamente ao ser em si a consciência é o "ser-para-si, isto é,
presença a si mesma".
8.
.A presença a si mesma implica uma cisão, uma separação interior, no ser da
consciência. Uma crença, por exemplo, é, como tal, sempre consciência da
crença; mas para a atingir como crença, é preciso de qualquer modo fixá-la como
tal, separá-la da consciência, a que é presente. Separá-la a través de que? De nada. Nada existe e pode existir
a separar o sujeito de si mesmo. A distância ideal, o lapso de tempo, a
diferença psicológica implicam certamente, como tais, elementos de
positividade; mas a sua função é sempre negativa. "A fissura interior à
consciência é nada fora daquilo que nega e só pode ter o ser enquanto não
vista, este negativo, que é um nada de ser, e ao mesmo tempo um poder
nulificante, é o nada. Em nenhum lugar o poderemos atingir numa tal pureza. Em
toda a parte, é preciso, de um modo ou de outro, conferir-lhe o ser-em-si
enquanto nada. Mas o nada que surge no coração da consciência não é , mas sim
foi ".
9. Condicionando
a estrutura da consciência, o nada condiciona a totalidade do ser, que o é
apenas pela consciência e na consciência. Sartre realça o significado negativo
dos termos aparentemente positivos com os quais Heidegger descreve ou
caracteriza a existência. Que o Dasein esteja fora de si, no mundo, que seja
"um ser da distância, que seja cuidado, que seja as suas próprias
possibilidades, equivale a dizer, segundo Sartre, que ele não é em si, que não
é a si mesmo numa proximidade imediata e que ultrapassa o mundo na medida em
que se coloca a si mesmo como não existente em si e como não existente no mundo
".
10. Estas
características pertencem todas ao ser-para-si, isto é, ao ser da consciência. Daqui
deriva a tese fundamental de Sartre: o ser devido ao qual o nada surge no mundo
deve ser o seu próprio nada. A consciência é o seu próprio nada na medida em
que se determina perpetuamente a não ser o em-si. Ela funda-se a si mesma
enquanto rejeita de si um certo ser ou uma certa maneira de ser. Em primeiro
lugar, nega o ser-em-si; e em segundo lugar nega ou nulifica o seu para-si e
constitui-se precisamente através desta nulificação e da presença nela daquilo
que nulifica, exatamente a título de nulificado. O se como ser-em-si falhado é
o sentido da realidade humana. O fato de a realidade humana ser nulificação
falta de ser é já suficientemente demonstrado pelo desejo: este só pode ser
explicado como falta própria do ser que deseja, isto é, como uma necessidade de
se completar. Ao ser referido à consciência, a própria realidade objetiva ( o
ser-em-si) é afetado por aquela falta e nulifica-se a si mesma. Por seu lado, o
ser-em-si é sempre completo, sempre cheio. A um círculo incompleto, a um quarto
de lua, não falta verdadeiramente nada: são aquilo que são. Só a consciência
lhes atribui uma falta na medida em que espera ou pretende o seu complemento,
aquilo que não é. Todos os aspectos da realidade humana são interpretados por
Sartre de forma análoga. O fato de a realidade humana ser constituída por
possíveis significa apenas que é constituída pela falta de qualquer coisa que a
completaria. "o possível é aquilo que falta ao para-si para ser si".
11.
Isto é, é aquilo que falta ao sujeito para ser objeto e que só existe,
portanto, a título de falta ou de deficiência. O mesmo acontece com o valor,
que o é enquanto não é; isto porque, mesmo quando toma corpo ou é intuído em
certos atos, está para além deles e constitui o limite ou o termo para que eles
tendem. Como valor, o valor nunca é, visto estar sempre para além daquilo que
é; o seu ser consiste em ser o fundamento do seu próprio nada, isto é, o
fundamento daqueles atos ou situações que tendem para ele, mas em que ele, como
valor, não é. O conhecimento, pelo qual o objeto ( o em-si) se apresenta à
consciência ( para-si), é do mesmo modo uma relação de nulificação: o objeto só
se pode apresentar à consciência como aquilo que não é consciência. Ainda de
forma análoga, a outra existência só o é na medida em que não é a minha: esta
negação é a estrutura constitutiva do ser outro. Nesse caso, a negação é mesmo
recíproca. Não só devo negar o outro em relação a mim mesmo, a fim de que o
outro exista, mas é ainda necessário que o outro me negue relativamente a ele próprio,
simultaneamente com a minha própria negação. Mas com esta dupla negação a existência do outro se torna coisa entre as coisas
do mundo: nega-se e nulifica-se como existência. Deste modo, o aparecimento da
existência do outro completo, por assim dizer, o processo de nulificação que é
a própria estrutura da consciência. A consciência não é apenas o ser que surge
como nulificação do em-si que ele é e como negação interna do em-si que ela não
é; é também a petrificação do próprio em-si sob o olhar do outro. É aqui que se
revela o significado profundo do mito da Medusa.
Para Sartre, o Nada da existência, é aquilo que é em relação à realidade objetiva ou de fato, que ele chama de em-si. A nulidade da consciência, que para Sartre se identifica com a existência, consiste no fato de que ela não é o seu objeto e não é um objeto, e que introduz no próprio objeto a imperfeição ou a deficiência que lhe é própria. As possibilidades que constituem a vida vivida da consciência são nada porque não são realidades, não são fatos nem objetos: e o mesmo pode-se dizer dos valores.
Para Sartre, o Nada da existência, é aquilo que é em relação à realidade objetiva ou de fato, que ele chama de em-si. A nulidade da consciência, que para Sartre se identifica com a existência, consiste no fato de que ela não é o seu objeto e não é um objeto, e que introduz no próprio objeto a imperfeição ou a deficiência que lhe é própria. As possibilidades que constituem a vida vivida da consciência são nada porque não são realidades, não são fatos nem objetos: e o mesmo pode-se dizer dos valores.
Para Sartre, a existência desagrega
e nulifica a realidade de fato e afirma-se sobre ela como poder absoluto. A
filosofia de Sartre é uma filosofia da liberdade absoluta que pretende
dissolver e anular toda a necessidade.
A liberdade, segundo Sartre, é a
possibilidade permanente daquela nulificação do mundo que é a própria estrutura
da existência. "Estou condenado, a existir para sempre para além da minha
essência, para além dos móbiles e dos motivos do meu ato: eu estou condenado a
ser livre".
12. Isto
significa que não se podem encontrar para a minha liberdade outros limites além
da própria liberdade: ou, que não somos livres de deixar de ser livres. A
liberdade não é o arbítrio ou o capricho momentâneo do indivíduo: radica na
mais intima estrutura da existência, é a própria existência. Um existente que,
como consciência, está necessariamente separado de todos os outros, já que
esses se encontram em relação com ele apenas na medida em que existem para ele,
um existente que decide do seu passado, sob forma de tradição, à luz do seu
futuro, em vez de deixá-lo pura e simplesmente determinar o seu presente, um
existente que se perspectiva através de algo distinto de si, isto é, de um fim
que não é e que ele projeta no outro lado do mundo, eis aquilo, a que chamamos
um existente livre. É evidente que a liberdade não se refere tanto aos atos e
às volições particulares como ao projeto fundamental em que eles se encontram
compreendidos, o qual constitui a possibilidade última da realidade humana, a
sua escolha originária. O projeto fundamental deixa sem dúvida uma certa margem
de contingência às volições e aos atos particulares, mas a liberdade originária
é aquela que é inerente à escolha do próprio projeto. E é uma liberdade
incondicionada. A modificação do projeto inicial é a todo o momento possível.
" A angústia que, quando revelada , manifesta à nossa consciência a nossa
liberdade, testemunha a modificabilidade perpétua do nosso projeto inicial ".
13. Nós
estamos perpetuamente ameaçados de nulificação da nossa escolha atual,
perpetuamente ameaçados de escolhermos ser, e, portanto tornamo-nos, diferentes
do que somos. A nossa opção é frágil pelo simples fato de ser absoluta:
assentando sobre ela a nossa liberdade, colocamos simultaneamente a sua
perpétua possibilidade de tornar-se um aquém ultrapassado pelo além que eu
serei. Certamente, a liberdade do projeto inicial não é a possibilidade de
fugir ao mundo e anular o próprio mundo. Se a liberdade significa fugir ao dado
ou ao fato, ela é o fato do fugir ao fato. A liberdade permanece nos limites da
fatalidade, isto é, do mundo. Mas esta fatalidade é indeterminada: a liberdade
põe-na em ser com a sua escolha. Por isso o homem é responsável pelo mundo e
por si mesmo enquanto maneira de ser. Tudo o que acontece no mundo reporta-se à
liberdade e à responsabilidade da escolha originária; por isso, nada daquilo
que acontece ao homem pode ser dito inumano. Não existe aí uma situação
inumana: somente pelo medo, pela fuga ou pelo recurso a comportamentos mágicos,
eu decidirei sobre aquilo que é inumano; mas esta decisão é humana e dela terei
inteira responsabilidade. Sou eu que decido do coeficiente de adversidade das
coisas e até da sua imprevisibilidade decidindo de mim própria. Não existem
casos acidentais: um acontecimento social que se me depara subitamente e me
arrasta não é exterior a mim; se for mobilizada para uma guerra, esta é a minha
guerra, a minha imagem, e eu mereço-a: “Mereço-a em primeiro lugar porque poderia
subtrair-me a ela suicidando-me ou desertando; devemos ter sempre presentes
estas possibilidades últimas quando temos de enfrentar uma situação. Se não me
subtraí a ela, é porque a escolhi: talvez que o tenha feito apenas por fraqueza
perante a opinião pública, dado que prefiro certos valores à recusa de entrar
na guerra. Mas de qualquer modo, trata-se sempre de uma opção".
14. Os
atos, decisões e escolhas particulares repõem sistematicamente em questão a
escolha originária, o projeto fundamental, que por sua vez determina dentro de
certos limites as opções, as volições e os atos particulares. Sartre pensa que
a estrutura ontológica do projeto fundamental deve ser atingida através de uma
Psicanálise Existencial, diferente da psicanálise de Freud, sobretudo porque a
sua justificação última consiste em reconhecer a existência, não de uma força
instintiva que atua mecanicamente, mas sim de uma escolha livre. Para a
psicanálise existencial, projeto de ser, possibilidade, valor são termos
equivalentes que exprimem, todos, o fato fundamental de que o homem é desejo de
ser. Mas desejo de qual ser? Evidentemente do ser-em-si, já que o ser-para-si
(o ser da consciência) é um puro nada. Mas como desejo de ser-em-si (isto é, do
ser objetivo, de fato), a consciência tende para o ideal de uma consciência que
seja, com a pura consciência de si mesma, o fundamento do seu próprio
ser-em-si. Ora este ideal é aquilo a que se pode chamar Deus. "Pode-se
dizer então que aquilo que torna mais concebível o projeto fundamental da realidade
humana é o fato de que o homem é o ser que projeta ser Deus. Quaisquer que
sejam os mitos e os ritos da religião considerada, Deus é em primeiro lugar
'sensível ao coração' do homem como sendo aquilo que o anuncia e o define no
seu projeto último e fundamental.".
15. Ser
homem significa tender para deus; o homem é fundamentalmente desejo de ser
Deus. No entanto, o homem é um Deus falhado. Tudo parece indicar que o
ser-em-si do mundo e o ser-para-si da consciência se apresentam num estado de
desintegração relativamente a uma síntese ideal que nunca teve lugar, mas que é
sempre indicada e sempre impossível. O seu perpétuo fracasso explica
simultaneamente a indissolubilidade do em-si e do para-si e a sua relativa
independência. A passagem entre o para-si e o em-si é de fato impossível; e, no
entanto, é a passagem para que tende incessantemente a ação humana. O problema
da ação pressupõe a dilucidação da eficácia transcendente da consciência e
põe-nos no caminho da sua verdadeira relação com o ser. Uma ética apresenta-se
assim como o complemento necessário da ontologia. Esta moral deverá prescindir
do espírito de seriedade, isto é, da tendência para considerar as coisas já
providas do seu valor e o valor como um dado transcendente, independente da
subjetividade humana. Admitir o princípio de que só o homem é o ser para quem
os valores existem não é possível, a não ser que se tenha em conta o fato de
todas as atividades humanas serem equivalentes, dado que todas tendem a
sacrificar o homem para fazer surgir à causa de si, e que todas estão voltadas,
em princípio, ao fracasso. "No fundo, é a mesma coisa embebedar-se sozinho
ou conduzir os povos. Se uma destas atividades é superior à outra, não é devido
à sua finalidade real, mas sim devido à consciência que possui da sua
finalidade ideal; e neste caso a imobilidade do bêbado solitário é superior à
vã agitação do condutor de povos".
16. A
ontologia de Sartre não consegue disfarçar, uma inelutável compulsão à
transformação do homem. Uma primeira razão para compreendê-lo pode ser vista na
presença do problema moral, como já mencionamos, em seu livro O Ser e o Nada.
E, de um modo geral, embora não seja explicitado, o problema ético está mais
presente nas análises de Sartre; não é por acaso que ele conclui o seu livro
com uma longa série de perguntas que "só podem encontrar uma resposta no
terreno moral”.
17. Realmente,
toda a análise existencial de Sartre conduz necessária e obrigatoriamente a uma
ética. Além disso, ao longo de todo o livro, é flagrante o profundo inconformismo
de Sartre em face da condição, usual do homem. Com certeza, o seu projeto mais
original se concentra na exigência de transformação do homem.. Não é igualmente um acaso que nos último capítulo de O Ser e o Nada estejam
dedicados ao problema de uma Psicanálise Existencial. Retomando a temática,
esta psicanálise "procura determinar a escolha original”.
18. realizada
por cada indivíduo, essa escolha que é o centro de referências de uma
infinidade de significações polivalentes e que constitui o projeto fundamental
do homem. Sartre rejeita o postulado do inconsciente: o fato psíquico é
co-extensivo à consciência. Se o homem sabe em que consiste seu projeto
fundamental, se esse projeto é vivido plenamente por ele e se é, portanto,
totalmente consciente, isso ainda não quer dizer que ele lhe seja conhecido; a
psicanálise existencial se propõe tornar conhecido o que todo para-si
compreende desde sempre. Impõe-se, assim, a transformação do homem no sentido
de que se lhe torne acessível "a intuição final do sujeito”.
19. E
o importante é que, dessa forma, toda a ontologia encontra o seu significado
último no programa que se propõe à psicanálise existencial; diante desse
programa, "a ontologia nos abandona: ela nos permite simplesmente
determinar os fins últimos da realidade humana, seus possíveis fundamentos e o
valor que a persegue”.
20. Inequivocamente,
o sentido da teoria desemboca na prática transformadora do homem, em uma Ética. Considerada como prolegômenos a uma
ética futura, a filosofia de O Ser e o Nada autoriza dois tipos fundamentais de
relação. A primeira é a relação do sujeito consigo mesmo, visto que o para-si
se manifesta antes de tudo como presença a si; toda moral só pode descobrir seu
fundamento na subjetividade do sujeito. A outra relação é a de sujeito-objeto;
em última instância, não há uma relação intersubjetiva no existencialismo,
pois, o conflito que preside ao relacionamento com o outro termina por frustrar
qualquer tentativa de superar a categoria do objeto. Convém acrescentar que, se
a negação determina a relação, a rigor, a relação se nega a si própria: uma
relação negativamente determinada não chega a ser propriamente uma relação. De
qualquer forma, esses dois tipos de relação constituem o palco em que se
desenvolve o comportamento moral do homem e em que se apresentam basilares da
ética: liberdade, valor, compromisso, responsabilidade e, de um modo geral, a
ação humana.
O para-si é liberdade compreendida
como autonomia de escolha, e Sartre leva essa autonomia às suas últimas
implicações. Por ela, determina-se o conceito-chave da ética: o valor. Se a
liberdade é absoluta, o valor não poderia apresentar consistência objetiva;
muito pelo contrário, o valor brota da subjetividade. A ontologia e a
psicanálise existencial devem mostrar ao homem que "ele é o ser pelo qual
os valores existem”.
21. E
note-se que por homem se entende a individualidade subjetiva. Com efeito, o
valor exige um fundamento; mas o fundamento não poderia ser o ser, pois se o
fosse, desde que o homem se norteia por valores, o comportamento instauraria a
má-fé e destruiria a liberdade. Segue-se que a liberdade é o único fundamento
dos valores e que nada, absolutamente nada, me justifica ao adotar tal ou tal
valor, tal ou tal escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem
eu sou injustificável. E minha liberdade se angustia de ser o fundamento sem
fundamento dos valores. Assim como não há natureza humana que determina o que o
homem deve fazer, também não há uma ordem pré-estabelecida de valores. Desse
modo, o valor encontra a sua gênese no ato livre, é absolutamente
indeterminado: escolher é inventar. Disso resulta que o homem é apenas seu
projeto, só existe na medida em que se realiza, ele é tão-somente o conjunto de
seus atos. De um ponto de vista negativo, a
má-fé polariza a grande preocupação dessa doutrina. Sartre busca pensar o fato
da subjetividade até os seus limites mais extremos, e para ele isso significa a
necessidade de excluir a categoria do objeto. Quando o homem se deixa
determinar pelo objeto, ou por uma objetividade que se pretende autônomas,
assume "l'esprit de sérieux”; parte-se então, do mundo e se atribui mais
realidade ao mundo que a si mesmo. Segundo Sartre, Marx colocou o dogma
primeiro do sério quando afirmou a prioridade do objeto sobre o sujeito, e o
homem é sério quando se toma por um objeto. Essa seriedade define precisamente
a má-fé, que bloqueia a espontaneidade inventiva dos atos. Por essa razão,
Sartre recusa toda a moral tradicional, que é livre para o mal e não para o
bem, que é livre para o erro e não para a verdade. Bem e mal, verdade e erro
devem ser invenções do homem. Nesse sentido, liberdade se faz sinônimo de
libertação. Mas cabe então perguntar: libertação do que? Libertação, antes de tudo, de tudo
o que não se confunde com a própria subjetividade. Mas libertação também de si
mesmo. Inventar um determinismo é como que introduzir o em-si no fundamento do
para-si, numa tentativa de coincidir absolutamente consigo mesmo e, em
conseqüência, de justificar -se na condição de objetividade. No entanto, a
liberdade é fuga de si, é manter-se à distância de si próprio e haver-se com a
angústia de não poder ser. "Uma liberdade que se quer como liberdade é um
ser-que-não-é-o-que-ele-é e que-é-o-que-ele-não-é que escolhe, como ideal de
ser, o ser-o-que-ele-não-é e o não-ser-o-que-ele-é”.
22. Isso
quer dizer, enfim, que a realidade humana nunca está realmente em casa, e
quando pensa que está, incide em má-fé. O homem se habita perpetuamente como um
estranho. Baseado nessa concepção da liberdade e do valor, Sartre pretende erigir a sua
moral da responsabilidade e do compromisso. Definido o valor como criação da
subjetividade, entende-se a coerência de Sartre ao dizer o que é
responsabilidade: "Tomamos a palavra responsabilidade em seu sentido
banal, como consciência (de) ser (o para-si) o autor incontestável de um
acontecimento ou de um objeto”.
23. A
definição não é banal, já porque não há nada de banal no que pretende Sartre:
condenado a ser livre, o homem carrega o peso do mundo; ele se torna
responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. O subjetivismo
de Sartre revela-se extremo: “tudo o que me acontece me acontece por mim".
Se “cada pessoa é uma escolha absoluta de si”, “eu sou responsável por tudo,
salvo por minha própria responsabilidade, porque eu não sou o fundamento de meu
ser”.
24. Dessa
maneira o fundamento da responsabilidade permanece determinado de um modo
negativo, e não se entende bem em que sentido o homem possa realmente ser
responsável pelos outros. Quando Sartre afirma que " nossa
responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor , porque ela engaja a
humanidade inteira".
25. Enuncia
sem dúvida , uma grande idéia; no entanto, no contexto do existencialismo, ela
só pode ser justificada numa perspectiva idealista, ou seja, na medida em que ,
em algum sentido , eu for o " autor" dessa humanidade. Com efeito,
aqui Sartre não deixa margem a dúvidas: “Sou responsável por mim mesmo e por
todos, e crio uma certa imagem do homem que eu escolho; escolhendo a mim,
escolho o homem”.
26. Trata-se,
afinal, de uma criação de imagens, e dizer que o homem é responsável por todos
é o mesmo que dizer que só é responsável por si próprio.
Este mesmo individualismo se aplica
à acepção sartriana do compromisso. "Cada vez que o homem escolhe seu
compromisso e seu projeto com toda sinceridade e com toda lucidez, qualquer que
seja esse projeto, torna-se-lhe impossível preferir um outro".
27. Aqui
também, o fundamento do compromisso sofre uma determinação negativa, pois só se
esclarece a partir da subjetividade instauradora; a pressão das circunstâncias
se faz pressão enquanto nadificada pelo para-si. Nesse caso não se percebe como
realmente se pode verificar o compromisso; se a possível objetividade do valor
é determinada pelo para-si, então o homem só se compromete consigo mesmo. E
dizer que o homem pode julgar o outro, reconhecendo, por exemplo, que ao
afirmar "querer a liberdade, nós descobrimos que ela depende inteiramente
da liberdade dos outros”.
28. Não
é suficiente para que se justifique o compromisso ou a responsabilidade; a
concepção sartriana do homem não permite ao para-si “aderir” a nada,
precisamente porque ele só é, só tem ser, pelo nada, e seu desenraizamento
termina sendo total. Se a lucidez é critério absoluto, o teor objetivo do
projeto torna-se indiferente, resvalando para uma neutralidade que tudo
justifica. Tudo indica que é exatamente a viabilidade do compromisso que termina sendo
tolhida pelo subjetivismo de Sartre; preso à dicotomia excessivamente rígida do
ser-em-si e do ser-para-si, o seu pensamento só pode comprometer-se com a
subjetivação radical do valor, já que a única alternativa seria a não menos
errada absolutização do mundo dos valores. Os Cahiers pour une moral e foram escritos durante os anos de l947 e l948. Mas
só foram publicados após a morte de Sartre em l983. Publicados assim
inacabados, eles permanecem naturalmente obscuros em alguns pontos, mas de
qualquer modo são a expressão de seu pensamento numa determinada época. Sartre, quando escreveu O Ser e o
Nada (l943) , manifestou a intenção de consagrar um estudo ao problema da
moral. Desse projeto deixou indicações esparsas em várias obras, entre as quais
os Cahiers pour une moral e, que foram escritos durante os anos de l947 e l948,
e publicado em l983. A moral de Sartre é uma moral indiferente às distinções do
bem e do mal. Ela assume suas responsabilidades frente a uma determinada
realidade humana. É a moral da situação.
Segundo os preceitos dessa moral,
os valores não existem em si. São criados pelo homem. Consciente de sua
liberdade, ele descobre angustiado que é a única fonte de valor. Como Sartre
não admite a existência de Deus, com isso desaparece a possibilidade de
existirem valores a priori, porque não há quem os pense. E Sartre, convencido
de que Deus não existe, admite que não existem valores diante de nós e que tudo
nos será permitido. Conclui-se que o fundamento dessa moral é precisamente a
ausência de toda norma moral, consubstanciada na ausência de Deus e na
liberdade absoluta do homem. Sartre traça livremente o projeto
de sua vida, sem interferência de normas preestabelecidas. As suas decisões
dependem apenas dele em cada situação. É o que projeta ser e só existe à medida
que se realiza. Ela se define e se constrói pela ação, dentro da relatividade
cultural da época em que vive. Face às pressões, deve agir com autenticidade
para legitimação de sua conduta. Sartre classifica de indecentes aqueles que se
comportam com má-fé. Nos Cahiers pour une moral e Sartre comenta que, para os que acreditam em Deus
como os cristãos , será lícito fazer o bem por ser moral. A moral ficaria assim
subordinada à ontologia. Tornar-se-ia legítima a subordinação do fazer ao ser.
Entretanto, para ele que não crê em Deus, a moral deve superar-se por um objetivo
que não seja ela. Deve-se dar de beber a quem tem sede não para praticar um
bem, mas para suprimir a sede. A moral se suprime quando se coloca e se coloca
quando se suprime. Sartre declara que “não quer
compreender o mundo, mas quer mudá-lo. É a idéia de uma filosofia engajada na
realização. E completa o pensamento dizendo que o mundo não existe somente para
ser mudado, mas para ser descoberto. Ser descoberto ao ser mudado. O mais
profundo mistério consiste talvez em que sejamos nós que o criamos”.
29. Sartre
sentencia que a moral deve ser histórica. Exalta a criação de uma moral
relativa, na qual o senhor se reconhece como a fonte da moral e se coloca acima
de toda moral. Nessa relação feudal de homem a homem, o servo descobre-se como
inessencial em face do senhor que é essencial. A história e a moral histórica
devem se preocupar com a ação: a ação do homem sobre o mundo, a ação do homem
sobre os homens e a correspondente reação dos homens e do mundo. Sartre
porpõe-se a fazer uma fenomenologia da ação e uma fenomenologia da história,
descrevendo a situação histórica e os objetivos do homem através dessa
história.
Sartre distingue dois momentos nítidos na história:
1. A
história alienada enquanto história voltada para a tradição. Trata-se de
conservar e aumentar o patrimônio herdado e seguir uma evolução inapercebida.
2. A
história sempre tentando se apreender. Sempre procurando o seu sentido pela
substantificação do futuro. Segundo Sartre, cada um nasce numa
determinada situação histórica. O problema é que essa situação é forjada por
aqueles que o precedem e que pretendem dar ao mundo o sentido que lhes convém.
São eles, que definem a natureza humana daqueles que os sucedem. Essa natureza
é insidiosa. É uma idéia que penetra em cada um de nós. Quem nasceu judeu, fica
penetrado de uma natureza judaica. Assim eu sou pensada pelos outros, graças
aos quais eu existo e que cerceiam a minha liberdade. Em suma, eu sou uma
liberdade hipotecada. Diante dessa situação eu posso assumir três atitudes:
seja resignar-me com ela, seja aceitá-la ou rejeitá-la, seja superá-la. Sartre
concebe, além da antinomia entre a moral e a história, uma moral concreta de
ação efetiva. E finalizando, lembramos Marcus e para quem Sartre foi a consciência do século.
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