domingo, 16 de março de 2014

O Paradoxo do Homem como Liberdade no Existencialismo de Jean-Paul Sartre

Sartre iniciou a sua atividade de filósofo com as investigações sobre psicologia "fenomenológica" tendo por objeto o eu, a imaginação e as emoções. O ponto de partida destas pesquisas era já a noção de intencionalidade da consciência, mas Sartre opõe-se desde início a Husserl pela sua interpretação existencialista desta noção. O ensaio sobre A Transcendência do Ego começa pela afirmação de que "o eu não é um habitante da consciência”

1.       que ele "não está na consciência, nem formalmente nem materialmente, mas sim fora , no mundo: é um ente do mundo como o eu de um outro".

2.       E conclui, opondo à tese de Husserl sobre a apoditicidade do eu, que o meu eu não é mais evidente para a consciência do que o eu de um outro, e que o eu e o mundo são dois objetos de uma consciência absoluta e impessoal que é simplesmente "a primeira condição e a fonte absoluta da existência".

3.       Com esta posição Sartre situa-se já fora do subjetivismo ou idealismo transcendental de Husserl. No ensaio sobre a Teoria das Emoções a consciência é entendida como "ser no mundo " e a emoção, como modo de ser da consciência, é interpretada como uma modificação mágica do mundo, isto é, uma modificação destinada a combater os perigos e os obstáculos do mundo sem instrumentos ou utensílios, com uma modificação maciça ou total do próprio mundo. A emoção surge quando "o mundo dos utensílios desaparece de improviso e o mundo mágico comparece em seu lugar".

4.       ela, por isso, "não é um acidente mas um modo de existência da consciência, uma das modalidades em que compreende o seu ser no mundo.

5.       Analogamente, a análise fenomenológica da imaginação conduz Sartre a reconhecer as seguintes condições que tornam possível a imaginação: “Para formar imagens a consciência deve ser livre em relação a todas as realidades particulares e esta liberdade deve poder definir-se como um ser no mundo que é simultaneamente constituição e aniquilação do mundo; a situação concreta da consciência no mundo deve, em cada instante, servir de motivação singular à constituição do irreal. Assim, o irreal deve sempre ser constituído sobre o fundo do mundo que nega, ficando bem ausente, por outro lado, que o mundo não se presta apenas a uma intuição representativa e que este fundo sintético necessita simplesmente de ser vivido como situação”.

6.       A consciência como ser no mundo, a consciência nas situações, o mundo como mundo de utensílios, são os principais conceitos que Sartre utilizava nas suas análises fenomenológicas; mas são conceitos que, nesta forma, deixam de pertencer à fenomenologia para pertencerem à análise existencial, que é precisamente aquela que se relaciona com o ser do mundo. Desde as suas primeiras obras, Sartre não foi um fenomenólogo, mas um existencialista. A ontologia da consciência entendida como ser no mundo é o fim nítido da principal obra de Sartre O Ser e o Nada. A consciência é em primeiro lugar consciência de qualquer coisa e de qualquer coisa que não é consciência. Sartre chama a este qualquer coisa ser-em-si. O ser-em-si só pode descrever-se analiticamente como "o ser que é aquilo que é", expressão que torna clara a sua opacidade, o seu caráter maciço e estático devido ao qual não é nem possível nem necessário, é pura positividade, é simplesmente".

7.       Relativamente ao ser em si a consciência é o "ser-para-si, isto é, presença a si mesma".

8.       .A presença a si mesma implica uma cisão, uma separação interior, no ser da consciência. Uma crença, por exemplo, é, como tal, sempre consciência da crença; mas para a atingir como crença, é preciso de qualquer modo fixá-la como tal, separá-la da consciência, a que é presente. Separá-la a través de que? De nada. Nada existe e pode existir a separar o sujeito de si mesmo. A distância ideal, o lapso de tempo, a diferença psicológica implicam certamente, como tais, elementos de positividade; mas a sua função é sempre negativa. "A fissura interior à consciência é nada fora daquilo que nega e só pode ter o ser enquanto não vista, este negativo, que é um nada de ser, e ao mesmo tempo um poder nulificante, é o nada. Em nenhum lugar o poderemos atingir numa tal pureza. Em toda a parte, é preciso, de um modo ou de outro, conferir-lhe o ser-em-si enquanto nada. Mas o nada que surge no coração da consciência não é , mas sim foi ".

9.       Condicionando a estrutura da consciência, o nada condiciona a totalidade do ser, que o é apenas pela consciência e na consciência. Sartre realça o significado negativo dos termos aparentemente positivos com os quais Heidegger descreve ou caracteriza a existência. Que o Dasein esteja fora de si, no mundo, que seja "um ser da distância, que seja cuidado, que seja as suas próprias possibilidades, equivale a dizer, segundo Sartre, que ele não é em si, que não é a si mesmo numa proximidade imediata e que ultrapassa o mundo na medida em que se coloca a si mesmo como não existente em si e como não existente no mundo ".

10.     Estas características pertencem todas ao ser-para-si, isto é, ao ser da consciência. Daqui deriva a tese fundamental de Sartre: o ser devido ao qual o nada surge no mundo deve ser o seu próprio nada. A consciência é o seu próprio nada na medida em que se determina perpetuamente a não ser o em-si. Ela funda-se a si mesma enquanto rejeita de si um certo ser ou uma certa maneira de ser. Em primeiro lugar, nega o ser-em-si; e em segundo lugar nega ou nulifica o seu para-si e constitui-se precisamente através desta nulificação e da presença nela daquilo que nulifica, exatamente a título de nulificado. O se como ser-em-si falhado é o sentido da realidade humana. O fato de a realidade humana ser nulificação falta de ser é já suficientemente demonstrado pelo desejo: este só pode ser explicado como falta própria do ser que deseja, isto é, como uma necessidade de se completar. Ao ser referido à consciência, a própria realidade objetiva ( o ser-em-si) é afetado por aquela falta e nulifica-se a si mesma. Por seu lado, o ser-em-si é sempre completo, sempre cheio. A um círculo incompleto, a um quarto de lua, não falta verdadeiramente nada: são aquilo que são. Só a consciência lhes atribui uma falta na medida em que espera ou pretende o seu complemento, aquilo que não é. Todos os aspectos da realidade humana são interpretados por Sartre de forma análoga. O fato de a realidade humana ser constituída por possíveis significa apenas que é constituída pela falta de qualquer coisa que a completaria. "o possível é aquilo que falta ao para-si para ser si".

11.     Isto é, é aquilo que falta ao sujeito para ser objeto e que só existe, portanto, a título de falta ou de deficiência. O mesmo acontece com o valor, que o é enquanto não é; isto porque, mesmo quando toma corpo ou é intuído em certos atos, está para além deles e constitui o limite ou o termo para que eles tendem. Como valor, o valor nunca é, visto estar sempre para além daquilo que é; o seu ser consiste em ser o fundamento do seu próprio nada, isto é, o fundamento daqueles atos ou situações que tendem para ele, mas em que ele, como valor, não é. O conhecimento, pelo qual o objeto ( o em-si) se apresenta à consciência ( para-si), é do mesmo modo uma relação de nulificação: o objeto só se pode apresentar à consciência como aquilo que não é consciência. Ainda de forma análoga, a outra existência só o é na medida em que não é a minha: esta negação é a estrutura constitutiva do ser outro. Nesse caso, a negação é mesmo recíproca. Não só devo negar o outro em relação a mim mesmo, a fim de que o outro exista, mas é ainda necessário que o outro me negue relativamente a ele próprio, simultaneamente com a minha própria negação. Mas com esta dupla negação a existência do outro se torna coisa entre as coisas do mundo: nega-se e nulifica-se como existência. Deste modo, o aparecimento da existência do outro completo, por assim dizer, o processo de nulificação que é a própria estrutura da consciência. A consciência não é apenas o ser que surge como nulificação do em-si que ele é e como negação interna do em-si que ela não é; é também a petrificação do próprio em-si sob o olhar do outro. É aqui que se revela o significado profundo do mito da Medusa.
Para Sartre, o Nada da existência, é aquilo que é em relação à realidade objetiva ou de fato, que ele chama de em-si. A nulidade da consciência, que para Sartre se identifica com a existência, consiste no fato de que ela não é o seu objeto e não é um objeto, e que introduz no próprio objeto a imperfeição ou a deficiência que lhe é própria. As possibilidades que constituem a vida vivida da consciência são nada porque não são realidades, não são fatos nem objetos: e o mesmo pode-se dizer dos valores.
Para Sartre, a existência desagrega e nulifica a realidade de fato e afirma-se sobre ela como poder absoluto. A filosofia de Sartre é uma filosofia da liberdade absoluta que pretende dissolver e anular toda a necessidade.
A liberdade, segundo Sartre, é a possibilidade permanente daquela nulificação do mundo que é a própria estrutura da existência. "Estou condenado, a existir para sempre para além da minha essência, para além dos móbiles e dos motivos do meu ato: eu estou condenado a ser livre".

12.     Isto significa que não se podem encontrar para a minha liberdade outros limites além da própria liberdade: ou, que não somos livres de deixar de ser livres. A liberdade não é o arbítrio ou o capricho momentâneo do indivíduo: radica na mais intima estrutura da existência, é a própria existência. Um existente que, como consciência, está necessariamente separado de todos os outros, já que esses se encontram em relação com ele apenas na medida em que existem para ele, um existente que decide do seu passado, sob forma de tradição, à luz do seu futuro, em vez de deixá-lo pura e simplesmente determinar o seu presente, um existente que se perspectiva através de algo distinto de si, isto é, de um fim que não é e que ele projeta no outro lado do mundo, eis aquilo, a que chamamos um existente livre. É evidente que a liberdade não se refere tanto aos atos e às volições particulares como ao projeto fundamental em que eles se encontram compreendidos, o qual constitui a possibilidade última da realidade humana, a sua escolha originária. O projeto fundamental deixa sem dúvida uma certa margem de contingência às volições e aos atos particulares, mas a liberdade originária é aquela que é inerente à escolha do próprio projeto. E é uma liberdade incondicionada. A modificação do projeto inicial é a todo o momento possível. " A angústia que, quando revelada , manifesta à nossa consciência a nossa liberdade, testemunha a modificabilidade perpétua do nosso projeto inicial ".

13.     Nós estamos perpetuamente ameaçados de nulificação da nossa escolha atual, perpetuamente ameaçados de escolhermos ser, e, portanto tornamo-nos, diferentes do que somos. A nossa opção é frágil pelo simples fato de ser absoluta: assentando sobre ela a nossa liberdade, colocamos simultaneamente a sua perpétua possibilidade de tornar-se um aquém ultrapassado pelo além que eu serei. Certamente, a liberdade do projeto inicial não é a possibilidade de fugir ao mundo e anular o próprio mundo. Se a liberdade significa fugir ao dado ou ao fato, ela é o fato do fugir ao fato. A liberdade permanece nos limites da fatalidade, isto é, do mundo. Mas esta fatalidade é indeterminada: a liberdade põe-na em ser com a sua escolha. Por isso o homem é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tudo o que acontece no mundo reporta-se à liberdade e à responsabilidade da escolha originária; por isso, nada daquilo que acontece ao homem pode ser dito inumano. Não existe aí uma situação inumana: somente pelo medo, pela fuga ou pelo recurso a comportamentos mágicos, eu decidirei sobre aquilo que é inumano; mas esta decisão é humana e dela terei inteira responsabilidade. Sou eu que decido do coeficiente de adversidade das coisas e até da sua imprevisibilidade decidindo de mim própria. Não existem casos acidentais: um acontecimento social que se me depara subitamente e me arrasta não é exterior a mim; se for mobilizada para uma guerra, esta é a minha guerra, a minha imagem, e eu mereço-a: “Mereço-a em primeiro lugar porque poderia subtrair-me a ela suicidando-me ou desertando; devemos ter sempre presentes estas possibilidades últimas quando temos de enfrentar uma situação. Se não me subtraí a ela, é porque a escolhi: talvez que o tenha feito apenas por fraqueza perante a opinião pública, dado que prefiro certos valores à recusa de entrar na guerra. Mas de qualquer modo, trata-se sempre de uma opção".

14.     Os atos, decisões e escolhas particulares repõem sistematicamente em questão a escolha originária, o projeto fundamental, que por sua vez determina dentro de certos limites as opções, as volições e os atos particulares. Sartre pensa que a estrutura ontológica do projeto fundamental deve ser atingida através de uma Psicanálise Existencial, diferente da psicanálise de Freud, sobretudo porque a sua justificação última consiste em reconhecer a existência, não de uma força instintiva que atua mecanicamente, mas sim de uma escolha livre. Para a psicanálise existencial, projeto de ser, possibilidade, valor são termos equivalentes que exprimem, todos, o fato fundamental de que o homem é desejo de ser. Mas desejo de qual ser? Evidentemente do ser-em-si, já que o ser-para-si (o ser da consciência) é um puro nada. Mas como desejo de ser-em-si (isto é, do ser objetivo, de fato), a consciência tende para o ideal de uma consciência que seja, com a pura consciência de si mesma, o fundamento do seu próprio ser-em-si. Ora este ideal é aquilo a que se pode chamar Deus. "Pode-se dizer então que aquilo que torna mais concebível o projeto fundamental da realidade humana é o fato de que o homem é o ser que projeta ser Deus. Quaisquer que sejam os mitos e os ritos da religião considerada, Deus é em primeiro lugar 'sensível ao coração' do homem como sendo aquilo que o anuncia e o define no seu projeto último e fundamental.".

15.     Ser homem significa tender para deus; o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus. No entanto, o homem é um Deus falhado. Tudo parece indicar que o ser-em-si do mundo e o ser-para-si da consciência se apresentam num estado de desintegração relativamente a uma síntese ideal que nunca teve lugar, mas que é sempre indicada e sempre impossível. O seu perpétuo fracasso explica simultaneamente a indissolubilidade do em-si e do para-si e a sua relativa independência. A passagem entre o para-si e o em-si é de fato impossível; e, no entanto, é a passagem para que tende incessantemente a ação humana. O problema da ação pressupõe a dilucidação da eficácia transcendente da consciência e põe-nos no caminho da sua verdadeira relação com o ser. Uma ética apresenta-se assim como o complemento necessário da ontologia. Esta moral deverá prescindir do espírito de seriedade, isto é, da tendência para considerar as coisas já providas do seu valor e o valor como um dado transcendente, independente da subjetividade humana. Admitir o princípio de que só o homem é o ser para quem os valores existem não é possível, a não ser que se tenha em conta o fato de todas as atividades humanas serem equivalentes, dado que todas tendem a sacrificar o homem para fazer surgir à causa de si, e que todas estão voltadas, em princípio, ao fracasso. "No fundo, é a mesma coisa embebedar-se sozinho ou conduzir os povos. Se uma destas atividades é superior à outra, não é devido à sua finalidade real, mas sim devido à consciência que possui da sua finalidade ideal; e neste caso a imobilidade do bêbado solitário é superior à vã agitação do condutor de povos".

16.     A ontologia de Sartre não consegue disfarçar, uma inelutável compulsão à transformação do homem. Uma primeira razão para compreendê-lo pode ser vista na presença do problema moral, como já mencionamos, em seu livro O Ser e o Nada. E, de um modo geral, embora não seja explicitado, o problema ético está mais presente nas análises de Sartre; não é por acaso que ele conclui o seu livro com uma longa série de perguntas que "só podem encontrar uma resposta no terreno moral”.

17.     Realmente, toda a análise existencial de Sartre conduz necessária e obrigatoriamente a uma ética. Além disso, ao longo de todo o livro, é flagrante o profundo inconformismo de Sartre em face da condição, usual do homem. Com certeza, o seu projeto mais original se concentra na exigência de transformação do homem.. Não é igualmente um acaso que nos último capítulo de O Ser e o Nada estejam dedicados ao problema de uma Psicanálise Existencial. Retomando a temática, esta psicanálise "procura determinar a escolha original”.

18.     realizada por cada indivíduo, essa escolha que é o centro de referências de uma infinidade de significações polivalentes e que constitui o projeto fundamental do homem. Sartre rejeita o postulado do inconsciente: o fato psíquico é co-extensivo à consciência. Se o homem sabe em que consiste seu projeto fundamental, se esse projeto é vivido plenamente por ele e se é, portanto, totalmente consciente, isso ainda não quer dizer que ele lhe seja conhecido; a psicanálise existencial se propõe tornar conhecido o que todo para-si compreende desde sempre. Impõe-se, assim, a transformação do homem no sentido de que se lhe torne acessível "a intuição final do sujeito”.

19.     E o importante é que, dessa forma, toda a ontologia encontra o seu significado último no programa que se propõe à psicanálise existencial; diante desse programa, "a ontologia nos abandona: ela nos permite simplesmente determinar os fins últimos da realidade humana, seus possíveis fundamentos e o valor que a persegue”.

20.     Inequivocamente, o sentido da teoria desemboca na prática transformadora do homem, em uma Ética. Considerada como prolegômenos a uma ética futura, a filosofia de O Ser e o Nada autoriza dois tipos fundamentais de relação. A primeira é a relação do sujeito consigo mesmo, visto que o para-si se manifesta antes de tudo como presença a si; toda moral só pode descobrir seu fundamento na subjetividade do sujeito. A outra relação é a de sujeito-objeto; em última instância, não há uma relação intersubjetiva no existencialismo, pois, o conflito que preside ao relacionamento com o outro termina por frustrar qualquer tentativa de superar a categoria do objeto. Convém acrescentar que, se a negação determina a relação, a rigor, a relação se nega a si própria: uma relação negativamente determinada não chega a ser propriamente uma relação. De qualquer forma, esses dois tipos de relação constituem o palco em que se desenvolve o comportamento moral do homem e em que se apresentam basilares da ética: liberdade, valor, compromisso, responsabilidade e, de um modo geral, a ação humana.
O para-si é liberdade compreendida como autonomia de escolha, e Sartre leva essa autonomia às suas últimas implicações. Por ela, determina-se o conceito-chave da ética: o valor. Se a liberdade é absoluta, o valor não poderia apresentar consistência objetiva; muito pelo contrário, o valor brota da subjetividade. A ontologia e a psicanálise existencial devem mostrar ao homem que "ele é o ser pelo qual os valores existem”.

21.     E note-se que por homem se entende a individualidade subjetiva. Com efeito, o valor exige um fundamento; mas o fundamento não poderia ser o ser, pois se o fosse, desde que o homem se norteia por valores, o comportamento instauraria a má-fé e destruiria a liberdade. Segue-se que a liberdade é o único fundamento dos valores e que nada, absolutamente nada, me justifica ao adotar tal ou tal valor, tal ou tal escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem eu sou injustificável. E minha liberdade se angustia de ser o fundamento sem fundamento dos valores. Assim como não há natureza humana que determina o que o homem deve fazer, também não há uma ordem pré-estabelecida de valores. Desse modo, o valor encontra a sua gênese no ato livre, é absolutamente indeterminado: escolher é inventar. Disso resulta que o homem é apenas seu projeto, só existe na medida em que se realiza, ele é tão-somente o conjunto de seus atos. De um ponto de vista negativo, a má-fé polariza a grande preocupação dessa doutrina. Sartre busca pensar o fato da subjetividade até os seus limites mais extremos, e para ele isso significa a necessidade de excluir a categoria do objeto. Quando o homem se deixa determinar pelo objeto, ou por uma objetividade que se pretende autônomas, assume "l'esprit de sérieux”; parte-se então, do mundo e se atribui mais realidade ao mundo que a si mesmo. Segundo Sartre, Marx colocou o dogma primeiro do sério quando afirmou a prioridade do objeto sobre o sujeito, e o homem é sério quando se toma por um objeto. Essa seriedade define precisamente a má-fé, que bloqueia a espontaneidade inventiva dos atos. Por essa razão, Sartre recusa toda a moral tradicional, que é livre para o mal e não para o bem, que é livre para o erro e não para a verdade. Bem e mal, verdade e erro devem ser invenções do homem. Nesse sentido, liberdade se faz sinônimo de libertação. Mas cabe então perguntar: libertação do que? Libertação, antes de tudo, de tudo o que não se confunde com a própria subjetividade. Mas libertação também de si mesmo. Inventar um determinismo é como que introduzir o em-si no fundamento do para-si, numa tentativa de coincidir absolutamente consigo mesmo e, em conseqüência, de justificar -se na condição de objetividade. No entanto, a liberdade é fuga de si, é manter-se à distância de si próprio e haver-se com a angústia de não poder ser. "Uma liberdade que se quer como liberdade é um ser-que-não-é-o-que-ele-é e que-é-o-que-ele-não-é que escolhe, como ideal de ser, o ser-o-que-ele-não-é e o não-ser-o-que-ele-é”.

22.     Isso quer dizer, enfim, que a realidade humana nunca está realmente em casa, e quando pensa que está, incide em má-fé. O homem se habita perpetuamente como um estranho. Baseado nessa concepção da liberdade e do valor, Sartre pretende erigir a sua moral da responsabilidade e do compromisso. Definido o valor como criação da subjetividade, entende-se a coerência de Sartre ao dizer o que é responsabilidade: "Tomamos a palavra responsabilidade em seu sentido banal, como consciência (de) ser (o para-si) o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto”.

23.     A definição não é banal, já porque não há nada de banal no que pretende Sartre: condenado a ser livre, o homem carrega o peso do mundo; ele se torna responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. O subjetivismo de Sartre revela-se extremo: “tudo o que me acontece me acontece por mim". Se “cada pessoa é uma escolha absoluta de si”, “eu sou responsável por tudo, salvo por minha própria responsabilidade, porque eu não sou o fundamento de meu ser”.

24.     Dessa maneira o fundamento da responsabilidade permanece determinado de um modo negativo, e não se entende bem em que sentido o homem possa realmente ser responsável pelos outros. Quando Sartre afirma que " nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor , porque ela engaja a humanidade inteira".

25.     Enuncia sem dúvida , uma grande idéia; no entanto, no contexto do existencialismo, ela só pode ser justificada numa perspectiva idealista, ou seja, na medida em que , em algum sentido , eu for o " autor" dessa humanidade. Com efeito, aqui Sartre não deixa margem a dúvidas: “Sou responsável por mim mesmo e por todos, e crio uma certa imagem do homem que eu escolho; escolhendo a mim, escolho o homem”.

26.     Trata-se, afinal, de uma criação de imagens, e dizer que o homem é responsável por todos é o mesmo que dizer que só é responsável por si próprio.
Este mesmo individualismo se aplica à acepção sartriana do compromisso. "Cada vez que o homem escolhe seu compromisso e seu projeto com toda sinceridade e com toda lucidez, qualquer que seja esse projeto, torna-se-lhe impossível preferir um outro".

27.     Aqui também, o fundamento do compromisso sofre uma determinação negativa, pois só se esclarece a partir da subjetividade instauradora; a pressão das circunstâncias se faz pressão enquanto nadificada pelo para-si. Nesse caso não se percebe como realmente se pode verificar o compromisso; se a possível objetividade do valor é determinada pelo para-si, então o homem só se compromete consigo mesmo. E dizer que o homem pode julgar o outro, reconhecendo, por exemplo, que ao afirmar "querer a liberdade, nós descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros”.

28.     Não é suficiente para que se justifique o compromisso ou a responsabilidade; a concepção sartriana do homem não permite ao para-si “aderir” a nada, precisamente porque ele só é, só tem ser, pelo nada, e seu desenraizamento termina sendo total. Se a lucidez é critério absoluto, o teor objetivo do projeto torna-se indiferente, resvalando para uma neutralidade que tudo justifica. Tudo indica que é exatamente a viabilidade do compromisso que termina sendo tolhida pelo subjetivismo de Sartre; preso à dicotomia excessivamente rígida do ser-em-si e do ser-para-si, o seu pensamento só pode comprometer-se com a subjetivação radical do valor, já que a única alternativa seria a não menos errada absolutização do mundo dos valores. Os Cahiers pour une moral e foram escritos durante os anos de l947 e l948. Mas só foram publicados após a morte de Sartre em l983. Publicados assim inacabados, eles permanecem naturalmente obscuros em alguns pontos, mas de qualquer modo são a expressão de seu pensamento numa determinada época. Sartre, quando escreveu O Ser e o Nada (l943) , manifestou a intenção de consagrar um estudo ao problema da moral. Desse projeto deixou indicações esparsas em várias obras, entre as quais os Cahiers pour une moral e, que foram escritos durante os anos de l947 e l948, e publicado em l983. A moral de Sartre é uma moral indiferente às distinções do bem e do mal. Ela assume suas responsabilidades frente a uma determinada realidade humana. É a moral da situação.
Segundo os preceitos dessa moral, os valores não existem em si. São criados pelo homem. Consciente de sua liberdade, ele descobre angustiado que é a única fonte de valor. Como Sartre não admite a existência de Deus, com isso desaparece a possibilidade de existirem valores a priori, porque não há quem os pense. E Sartre, convencido de que Deus não existe, admite que não existem valores diante de nós e que tudo nos será permitido. Conclui-se que o fundamento dessa moral é precisamente a ausência de toda norma moral, consubstanciada na ausência de Deus e na liberdade absoluta do homem. Sartre traça livremente o projeto de sua vida, sem interferência de normas preestabelecidas. As suas decisões dependem apenas dele em cada situação. É o que projeta ser e só existe à medida que se realiza. Ela se define e se constrói pela ação, dentro da relatividade cultural da época em que vive. Face às pressões, deve agir com autenticidade para legitimação de sua conduta. Sartre classifica de indecentes aqueles que se comportam com má-fé. Nos Cahiers pour une moral e Sartre comenta que, para os que acreditam em Deus como os cristãos , será lícito fazer o bem por ser moral. A moral ficaria assim subordinada à ontologia. Tornar-se-ia legítima a subordinação do fazer ao ser. Entretanto, para ele que não crê em Deus, a moral deve superar-se por um objetivo que não seja ela. Deve-se dar de beber a quem tem sede não para praticar um bem, mas para suprimir a sede. A moral se suprime quando se coloca e se coloca quando se suprime. Sartre declara que “não quer compreender o mundo, mas quer mudá-lo. É a idéia de uma filosofia engajada na realização. E completa o pensamento dizendo que o mundo não existe somente para ser mudado, mas para ser descoberto. Ser descoberto ao ser mudado. O mais profundo mistério consiste talvez em que sejamos nós que o criamos”.

29.     Sartre sentencia que a moral deve ser histórica. Exalta a criação de uma moral relativa, na qual o senhor se reconhece como a fonte da moral e se coloca acima de toda moral. Nessa relação feudal de homem a homem, o servo descobre-se como inessencial em face do senhor que é essencial. A história e a moral histórica devem se preocupar com a ação: a ação do homem sobre o mundo, a ação do homem sobre os homens e a correspondente reação dos homens e do mundo. Sartre porpõe-se a fazer uma fenomenologia da ação e uma fenomenologia da história, descrevendo a situação histórica e os objetivos do homem através dessa história.

Sartre distingue dois momentos nítidos na história:
1.       A história alienada enquanto história voltada para a tradição. Trata-se de conservar e aumentar o patrimônio herdado e seguir uma evolução inapercebida.
2.       A história sempre tentando se apreender. Sempre procurando o seu sentido pela substantificação do futuro. Segundo Sartre, cada um nasce numa determinada situação histórica. O problema é que essa situação é forjada por aqueles que o precedem e que pretendem dar ao mundo o sentido que lhes convém. São eles, que definem a natureza humana daqueles que os sucedem. Essa natureza é insidiosa. É uma idéia que penetra em cada um de nós. Quem nasceu judeu, fica penetrado de uma natureza judaica. Assim eu sou pensada pelos outros, graças aos quais eu existo e que cerceiam a minha liberdade. Em suma, eu sou uma liberdade hipotecada. Diante dessa situação eu posso assumir três atitudes: seja resignar-me com ela, seja aceitá-la ou rejeitá-la, seja superá-la. Sartre concebe, além da antinomia entre a moral e a história, uma moral concreta de ação efetiva. E finalizando, lembramos Marcus e para quem Sartre foi a consciência do século.

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